14 de maio de 2011

Dois títulos escritos por Jean-David Morvan (Casterman)

A capacidade de trabalho de Jean-David Morvan é enorme, o que se consubstancia na existência de dezenas de séries, desdobradas em múltiplos volumes, assinadas por este argumentista. É verdade que a quantidade nada diz, e muitos dos títulos em que Morvan trabalha são adaptações (como Abraham), ou em co-autoria (como Helldorado, da parte escrita, já que isso é óbvio no que diz respeito à dimensão visual), mas não se pode negar a sua produção incansável. Em Portugal, que saibamos, foram traduzidos dois títulos: Wolverine: Saudade, pela BDMania, e a série Senda, com 5 volumes publicados (dos 13 + 6 da original Sillage), pela VitaminaBd, ambas colaborações com o artista Philippe Buchet. Da nossa parte, já havíamos debatido, ainda que muito brevemente, Guerres Civiles.
Não tendo lido toda a obra deste autor, não poderemos afirmar até que ponto existirão características constantes ou em evolução de livro a livro. É notória a variedade de géneros, projectos, editoras, e é precisamente nesse aspecto que Morvan nos surge - não enquanto caso único, mas pelo menos paradigmático - como um exemplo de como as diferenças editoriais entre os Estados Unidos e a França, e as imediatas consequências a nível autoral, se têm esbatido cada vez mais. Na ausência de um verdadeiro estudo balizado, apenas podemos apresentar as nossas impressões, muito superficiais e incompletas, mas estamos em crer estar a testemunhar uma aproximação das estratégias comerciais norte-americanas pelo mercado francófono: o relançamento de vários títulos em formatos “livro” (isto é, não-álbum), a preocupação em garantir a presença de edições “integrais”, a inclusão de “extras” nessas mesmas edições (uma imitação do que aconteceu com os trade paperbacks dos anos 1990, que por sua vez imitavam os DVDs), a busca de escritores, e não somente de artistas, “for hire”, isto é, convidados para o desenvolvimento de um projecto, mais do que autores totalmente autónomos e originais desses mesmos projectos (o que não sendo inédito de modo algum em França, é cada vez mais premente nos nossos dias). A presença de, por exemplo, Geoff Johns num projecto europeu (Olympus), ou aqueles títulos da Marvel criados na Europa são apenas aspectos dessas passagens. Isso leva a abordagens comerciais da banda desenhada, por vezes leves, mas que partilham lugar nas leituras a par de outras exigências.
Em suma, Morvan surge-nos como um exemplo curioso de possível estudo do comercialismo e mainstream da banda desenhada contemporânea francesa. Neste caso em particular, utilizamos “contemporâneo” apenas no seu valor cronológico, pois a primeira impressão que nos surge é que as preocupações destes dois projectos em discussão, pelo menos, não é tanto o lançamento de crises e de investigações internas à banda desenhada, mas sim a manutenção das suas forças mais genéricas, os seus aspectos mais tradicionais e continuados. Nada disso deve implicar uma valorização por si só. Na verdade, quer La mémoire d’Abraham quer Helldorado são dois títulos que, obedecendo estritamente ao horizonte de expectativas dos géneros a que pertencem, são estruturados com competência e controlo. É aquilo que, numa abordagem mais simplista, se chamaria, “contar bem uma história”, o que é também perfeitamente legítimo, senão mesmo “natural” neste meio. Todavia, ainda que sejamos acusados de um certo elitismo, aí residirá uma diferenciação em que relação ao que se chamará de “política dos autores”, a qual contribui para a contínua expansão dos instrumentos da própria linguagem empregue.
La Mémoire d'Abraham, Vols. 1, Les chemins de l'exil e 2, Arsinoé est morte. Morvan com Frédérique Voulyzé, baseado no romance de Mark Halter, desenhos de Ersel e Steven Dupré (Casterman).
“Romance” de Mark Halter sobre uma linhagem de escribas cujas origens se encontram num judeu da Palestina do primeiro século E.C., Abraão, que dá início a uma tradição de escrever uma genealogia assentando todos os nomes da sua família, até chegarmos ao seu membro mais contemporâneo, o próprio Halter, La Mémoire d’Abraham é mais do que isso: é uma reescrita dos documentos herdados pelo escritor que estabelecem a memória da sua família, é um espelho de parte da aventura atribulada do povo judeu desde esses tempos até aos nossos , e também uma reflexão sobre o modo como a cultura e a história respiram. A adaptação em banda desenhada apenas deu dois livros até à data, e não imaginando quantos títulos completarão a série, sabemos porém que a linha narrativa partirá desde 70 d.E.C., a queda de Jerusalém na primeira guerra da Judeia, até aos tempos da 2ª Grande Guerra. Logo, e não tendo lido o romance, é cedo para perceber qual o tratamento narrativo e ético que Halter (e os adaptadores desta banda desenhada) fará dessa história, dessas tribulações, das personagens que compõem a sua linha familiar, e das ligações delas mesmas com o mundo que as rodeia.
Cada álbum pretende concentrar-se num intervalo de tempo, o qual necessariamente focará um grupo de personagens que habitam esse intervalo. Não apenas isso nos permite ter uma panorâmica de cada um desses momentos, das relações dos judeus com os romanos, depois a emergência dos cristãos e as suas relações com essa (à data) seita, como toda a espécie de minudências políticas, económicas e culturais desses grupos em movimento, inclusive as internas. Não se trata de uma obra de história propriamente dita, a qual obrigaria a uma complexidade maior e uma menor linearidade e segurança, mas é essa mesma narratividade estrita que a transforma num objecto de legibilidade acentuada.
A especificidade de cada álbum é corroborada, senão mesmo sublinhada, pela estratégia (não apenas artística, parece-nos, mas comercial) pela sua específica variedade gráfica. Cada livro terá o seu artista, e até mesmo os seus coloristas, etc. (neste caso, é idêntico a muitos outros títulos, como Le Décalogue, ou a muitas das estratégias norte-americanas).
Provavelmente baseado em estratégias textuais de Halter, o livro dirigido por Morvan, que o adapta, coloca o narrador-memorizador contemporâneo no plano histórico que visita pela sua escrita [como se vê nesta imagem], o que a torna visualmente plástica.
Helldorado. Morvan com Miroslav Dragan, desenhos de Ignacio Noé (Casterman).
A natureza deste livro é bem diferente. A trama limitou-se a três álbuns, aqui reunidos num só volume reduzido (uma das estratégias de sedução de públicos diferenciados, novos hábitos de leitura, etc.), e é nesse sentido também que é mais concentrado ou que a sua diegese é ainda mais teleologicamente convergente numa só direcção. Não queremos dizer que não haverá camadas para polir e analisar neste título, mas que o seu propósito é mais superficial.
Esta “aventura” - este livro preenche com precisão as expectativas dessa palavra - passa-se numa ilha ficcional chamada de los Penitentes, mas está encaixada num ambiente e referências que pretende mimar a realidade histórica. Tudo nos leva a crer estarmos perante mais um dos encontros sangrentos entre os espanhóis de Cortez e os mexica/azteca, e os ingredientes, narrativos e visuais, bebem decerto da matéria histórica para melhor moldar e conduzir a criação de uma densa e apertada rede ficcional. Ou seja, a leitura deste livro associando-o à realidade da história é possivelmente o que se pretende, ainda que não de modo a, feito o mínimo esforço, que essa ficção não se revele como tal.
As personagens principais são dois adolescentes, Hutatsu e Dathcino, de uma suposta etnia chamada de Syyanas, vistos como párias mesmo por outros estratos étnicos e sociais (se não é que há mesmo uma confluência de ambos) que rapidamente caem entre a espada e a parede, a saber, entre a espada dos Conquistadores e a parede onde eles podem ser sacrificados nos seus rituais sangrentos. Mas há ainda outro território no qual eles se encontram misturados. O da doença. Uma doença “misteriosa” avassala ambos os campos, a dos conquistadores brancos e a dos invadidos autóctones, e de uma forma ou outra, estes dois jovens terão parte na agência necessária para a erradicar. Mais, cada uma das personagens envolvidas tem uma longa história, mesmo que não revelada na sua totalidade, que complica as suas personalidades e papéis na trama: um conquistador literalmente renascido das cinzas para uma missão cristã, a filha do monarca da ilha, homens de cada lado da luta pejados de dúvidas…. A cada entrada das personagens na equação de Helldorado, a trama densifica-se até um ponto magnífico. E aí temos todos os ingredientes necessários para delinear uma narrativa clássica e tensa.
Os desenhos de Noé recorda os de Das Pastoras: corpos que procuram a ultra-correcção anatómica, sublinhando a tessitura muscular, com um grande trabalho de textura das cores e volumes (e abusos nos efeitos permitidos pelo Photoshop), contornos a negro fechando visivelmente as figuras. Ou seja, instrumentos de clareza e espectacularidade que em tudo respeitam os desejos desta obra.
O epílogo tem alguns laivos de utopia transcultural [vejam esta página], ela mesmo passível objecto de estudo dos elementos políticos deste livro, que tanto pode ser objecto de alguns dos desejos dos jesuítas de então como de apenas uma extensão de alguns marcos ficcionais deste mesmo projecto. Na verdade, a dimensão política que este livro pode desencadear é muito marcante. Um autor como Diniz Conefrey, o qual se tem dedicado não apenas a um estudo sério, aturado e completo das culturas pré-colombianas, em todas as suas especificidades, e tentar mesmo devolver essas antigas “vozes” através do seu trabalho autoral (penso, claro, n’O Livro dos Dias, projecto infelizmente interrompido no seu desenho original pela inércia e as dificuldades do nosso mercado), encontrará decerto em Helldorado muita matéria de controvérsia, de erros factuais, de eventuais problemas mais profundos ainda, até de risibilidade em termos históricos, mas estamos em crer - sem querer impedir essa mesma discussão - que essas distorções não são muito diferentes de muitos dos outros gestos ficcionais em quaisquer outros géneros. O objectivo de Helldorado não é mais do que de total ficção e, repetimos, o da sua espectacularidade.
Retornando ao ponto de início, J.-D. Morvan é um escritor que utiliza todos os elementos que lhe são dados, ou por um texto anterior, uma ideia alheia, um projecto preparado, o que compõe o próprio género a que se dedica, para tecer com eles uma trama clara, directa e estruturada como ela o exige ser. Nada de impróprio ou indigno nessa nitidez.
Nota: agradecimentos à editora pela oferta dos livros.

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