1 de abril de 2010

Booth. C.C.Colbert e Tanitoc (First Second)

Penso que poderemos identificar três relações entre a História (e permitam-me a antopomorfização com a maiúscula), isto é, a disciplina epistemológica, e a banda desenhada, sem com isso querer construir uma tipologia estanque, mas antes campos de negociação.
Em primeiro lugar, teremos de confrontar a própria ideia de História, a qual é alvo de constantes reformulações conforme as posições ontológicas de cada nova escola que vai surgindo. Ainda hoje, há um número substancial de pessoas que consideram ainda a História como pautada por aquilo que um autor como F. R. Ankersmit chama do “postulado da dupla transparência”, isto é, a de que os textos de história nos dão acesso directo e desproblematizado à “realidade histórica” e que esses mesmos textos conseguem estar desassociados das intenções, desejos, posicionamento crítico, ou, se preferirem, a “inscrição” de quem os autorou. Encontrar-se-á aí as escolas analíticas e as narrativas, a estafada Quellenforschung, a apriorística historische Idee, a monologia.
Todavia, após os trabalhos sucessivos e inflexivos de Foucault e de Certau, dar-se-ia origem a novos posicionamentos (claro está, continuados de outras escolas anteriores, desde as escola dos Annales à Alltagsgeschichte). Certau: “A história é provavelmente o nosso mito”. O Novo Historicismo, por exemplo, sob os auspícios de Greenblatt, intenta outros fundamentos, os quais não apenas tomam em consideração a própria condição contemporânea de quem faz história (o verbo não é inocente; como escreve o historiador: “não há escapatória da contigência”), como ainda a heterogeneidade do passado, quer dizer, procura-se dar conta e, mais importantemente, dar voz, aos “outros” dessa antiga história. As repercussões desta posição são importantíssimas quer para a compreensão possível, sempre melhorada, desse passado, quer para a formulação da contemporaneidade. Basta pensar, por exemplo, nas questões de identidade: somos portugueses. Mas que quer isso dizer? Talvez queira dizer esquecer a falta de homogeneidade geográfica, cultural, étnica, e até moral, desta unidade política, em nome de uma qualquer ficção que servirá propósitos mais ou menos obscuros, usualmente patetas. Voltando a Ankersmit, reparemos que aquela distinção que ele faz entre a “individualidade” – o fenómeno que ocorre de facto na história – e a “identidade” de um dado fenómeno – determinação interpretativa que se dá ao fenómeno num determinado momento – é claríssima sobre o que é possível capturar nos discursos históricos: o segundo aspecto, único dado interpretável.
Mas voltemos às relações entre banda desenhada e História. A primeira relação é a mais divulgada: a da instrumentalização da banda desenhada enquanto veículo de simplificação pedagógica ou de sedução para as matérias da história. São todos aqueles casos em que se colhe da história (que jamais se trata de um discurso holístico, mas antes flutuante conforme o seu produtor, como vimos sucintamente) episódios drásticos, dramáticos, marcantes, e se procura encaixá-lo a fórmulas literárias (a “aventura”, as mais das vezes, mas também o humor, o proselitismo, a mera e deslustrada narrativa; e muitas vezes com menor rigor do que se poderia pensar e mais atenção à espectacularidade do que à moldagem do “mundo” que se pretende representar) para o tornar “empolgante”, “interessante”... Escusado será dar exemplos, os catálogos estão cheios dela, e as escolas secundárias, vazias de imaginação, agradecem. É aqui que encontraremos os “grandes autores”, os “clássicos” (de Jacques Martin a José Ruy). A história subsumida aos conteúdos escolares, a banda desenhada subsumida aos propósitos pedagógicos. Mas há casos interessantes e mais criativos, tão inteligentes como irónicos (ou uma coisa por causa da outra?), como os livros de Larry Gonick.
De seguida temos a banda desenhada enquanto instrumento efectivamente discursivo do pensamento histórico. Isto é, em que o texto de banda desenhada nasce da investigação verdadeiramente histórica, segundo todos os seus parâmetros, apenas se desviando na forma discursiva em si, a qual, em vez se ser feita em prosa investigativa, é feita sob a forma de histórias em banda desenhada (não dispensando notas de rodapé, fichas bibliográficas, chamadas de atenção para partes controversas e especulativas, etc.). Nesta zona em particular, o nome a destacar (único?) é o de Jack Jackson, com as suas histórias da formação dos Estados Unidos e a relação problemática entre os povos autóctones daquelas paragens e os “americanos”. A forma como Jackson recria os acontecimentos dessa época com a linguagem contemporânea é uma forma, como escreve Joseph Witek, de “contra-arrestar a sua qualidade de passado”; o seu discurso remete ao passado (fenómeno) mas reinscrevendo-o no seu presente (discursivo).
Finalmente, poderemos ainda identificar uma outra relação, mais negociada, a de um diálogo entre este meio de expressão particular e o pensamento histórico, em que o primeiro se orienta para uma exploração da parte especulativa, de modo vívido (dada a presença das imagens, uma dramatização em presença dos seus agentes, mas também a usual narrativização, construção de arcos lógicos e concisos, etc.), daqueles sectores no qual a história não pode entrar. É um terreno subtil no qual a história não pode penetrar sem o deixar de ser em rigor, mas pelo qual a banda desenhada – enquanto linguagem, veículo, meio – ajuda a expandir-se. É aqui que se inscreverá Booth, mas também, por exemplo, a História de Lisboa, de Oliveira Marques e Filipe Abranches. São obras nas quais os autores estão menos preocupados em reconstruir um discurso monolítico sobre os acontecimentos retratados, e muito menos dar voz à representação oficial, adaptada pela simplicidade às programações escolares, mas antes explorar esse manancial do passado e procurar vozes e acções dissonantes, que permitem a emergência de imagens “outras”. A obra de Oliveira Marques e Abranches mereceria um estudo à parte, dada a extensão do seu objecto, e até mesmo a diversidade das suas estratégias internas. Booth é um objecto relativamente mais unificado, não só pela sua “matéria” – um retrato de John Wilkes Booth durante os dois anos que o levariam de simpatizante da Confederação (a parte “sul” na Guerra Civil Americana) a conspirador até ao assassinato do Presidente Republicano (é preciso não esquecer) Lincoln e depois acossado e morto – mas pelo seu “material” – o livro em si, assinado por uma especialista da história “sulista”, Catherine Clinton, com o nom de plume C. C. Colbert, e o artista francês Tanitoc.
Se falamos de “retrato”, fazemo-lo com atenção. Reparemos na capa (a banda desenhada é usualmente um campo privilegiado para dar atenção às capas como significativos contributos paratextuais, e não mera decoração: quem vê capas, muitas vezes vê os livros neste campo) e utilizemo-la como mapa de leitura do livro em si. Como uma espécie de supra-título, ou comentário explicativo do que se encontrará no interior, temos uma sucessão de quatro adjectivos que não só configuram o protagonista, como apontam àquelas características que serão seguidas no livro. “Actor”, pois Booth pertencia a uma família do teatro, e testemunhamos a sua rivalidade com o irmão, também actor, e alguns dos seus sucessos; a atenção particular dada a peças como Hamlet e Julius Caesar pretende, obviamente, lançar uma rede intertextual nada anódina. “Amante”, já que seguimos o seu relacionamento amoroso com Lucy Hale, filha de um senador (que, apesar de democrata, era pró-União, e próximo de Lincoln); testemunhamos os seus primeiros encontros, as cartas e presentes, as frases que se vão acumulando criando uma relação, a promessa complexa e secreta; mas ainda vemos o relacionamento mais carnal de Booth com uma conspiradora, contraponto sexual e político de Lucy. “Idealista”, uma vez que parte do interesse de que Booth se reveste não terá a ver com a sua carreira artística nem a de amante (incumprida), mas sim o seu contributo político. Defensor acérrimo e directo da Confederação, vemo-lo a tomar partido dos ideiais que a pautaram, os quais estão relacionados sem dúvida com os princípios racistas e económicos (a posse da propriedade dos escravos, a “superioridade” do branco sobre o negro) mas também com a profunda desconfiança com governos centrais e a intervenção do estado federal em assuntos estatais (algo que ainda hoje se verifica, penso, claramente). E, finalmente, o corolário dessas premissas, expressa de modo significativo, ou mesmo dramático, depois de reticências, e seguida de um ponto final: “assassino”. É sob essa forma que Booth encontra lugar na História. É assim que ele é conhecido, é essa construção que vemos neste livro.
O resto da capa é bastante esclarecedor, se bem que de um modo desviante. A imagem que ocupa toda a parte da frente é um plano extremamente aproximado de Lincoln, o qual é seguido a cavalo por oficiais militares da União. Mas ao fundo, em silhueta recortada contra o amarelo de um fim de tarde em Washington (dados que são apenas esclarecidos no interior, como é óbvio), e no interior do primeiro “o” do seu próprio nome, como se se tratasse de uma moldura de retrato, vemos John Wilkes Booth. Ou melhor, apenas o vemos reduzido a essa silhueta, como se fosse apenas uma sombra sujeitada à portentosa figura do Presidente, ou a sombra que sobre ele paira.... De qualquer forma, Booth está necessariamente reduzido a uma função de Lincoln.
No entanto, a promessa do título é cumprida. O livro segue o trajecto, as relações, os passos e a ascensão (e queda) de Booth, é ele a figura central do livro, e é Lincoln na verdade que se torna a figura distante de toda esta narrativa, como se fosse ele a desculpa para o comportamento do actor-amante-assassino... A razão da divisão do Sul e Norte e da manutenção da Guerra, e o homem que, vencendo a Guerra, obriga ao acto de violência conhecido, mas perpretado com a ideia de ser uma justa vingança.
Como é sabido, Booth, depois de disparar sobre Lincoln no teatro e saltar sobre o palco, gritou “Sic semper tyrannis!”, que não é apenas uma referência ao César de Shakespear (intertextualidade da sua vida artística e convicções políticas) mas também a frase das armas do Estado de Virgínia (de onde era oriundo o maior exército da Confederação, comandado pelo General Lee e último bastião, derrotado, do Sul na Guerra Civil). Os autores deste livro optaram por mostrar uma vinheta com Booth visto de costas, no centro de uma página convencional, todas com momentos rápidos e descentralizados dos movimentos dos corpos, e com um balão de fala também parcialemente “fora de campo”, pondendo apenas ler-se um bocado da primeira palavra e a última desse moto. Este tipo de descentralização e fragmentação é sinal do tumulto desse acontecimento central, mas também é a pauta de uma das especificidades da banda desenhada mais explorada em Booth, como ainda é o princípio estruturador de toda a narrativa. Os autores, ou talvez sobretudo a escritora, optam não por mostrar acontecimentos fluidos e coesos, mas sim sucessivos momentos da vida de Booth, criando-se uma malha de referências daquelas partes da sua vida indicadas pelos adjectivos citados, sublinhando-se, nessa natureza fragmentária, como os elementos dispersos de uma vida compõem uma imagem (um “retrato”) final, reconhecida e quase consensual.
O gesto heterogéneo dos autores diz respeito à atenção para com o assassino, nem provocando uma imagem maniqueísta de um homem “mau”, nem procurando justificar a sua acção, mas antes colocando-a no centro da vida de uma pessoa pautada pelas suas experiências, convicções e circunstâncias. É nesse sentido que Booth se inscreve naquela relação da História repensada pelos instrumentos narrativos proporcionados por este meio (discutivelmente suprível por outros meios também).
A escrita de Colbert dá atenção a todos aqueles pormenores da “vida de todos os dias” desta personagem e daquelas que o rodeiam, tecendo-se assim o tal retrato descentralizado e outro que se prometera. Tanitoc é apresentado como “mestre da banda desenhada francesa”, o que diz mais das estratégias de publicidade do que de uma observação acertada, já que este autor apenas teve dois livros publicados ants do presente, e não são particularmente marcantes. Tanitoc está naquele novo território da banda desenhada francesa que pretende uma negociação sem grandes problematizações entre a legibilidade clássica e um certo grau de expressividade gráfica. Não se torna nem obstáculo nem plataforma enriquecedora do projecto narrativo, procurando até um grau de competência “transparente”, no sentido sustentado no início deste texto, ainda que procure explorar visualmente o tipo de descentralização a que se aventou acima (com enquadramentos parciais, focalizações internas, vinhetas silenciosas, picados “à holandesa”, etc.).
A autora faz intervalos entre cada capítulo com uma página de apenas texto (como se fosse um intertítulo de cinema mudo), com pequenos parágrafos explicitando o que se passa a seguir. Essa estratégia aparenta-se com os sumários empregues na capitulagem de certos livros, mas acaba por minar parte das regras literárias expectáveis neste tipo de livro. Não obstante, é ao mesmo tempo uma forma de re-inscrever este livro não no campo da ficção, coisa que não é, mas sim no de uma procura da “verdade histórica”, ou pelos menos numa “versão dos factos históricos”, que permite retornar à introdução feita.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro. Algumas das ideias sobre história que abrem este artigo foram catalizadas pela leitura de um artigo de Jürgen Pieters, “New Historicism: Postmodern Historiography between Narrativism and Heterology”, já para não falar do fundamental Comics Books as History, de Joseph Witek.

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