30 de abril de 2010

Journal d'Italie. Trieste-Bologne. David B. (Shampooing)

Um título é um dos aspectos paratextuais mais importantes no estabelecimento do horizonte de expectativas que nos lança à leitura de um livro. Journal d’Italie parece-nos prometer a restituição das impressões quotidianas do autor num país que não o seu (aqui recorremos a informações exteriores, até biografistas, mas sobejamente conhecidas e que em nada invadem a intimidade do autor, a qual, de resto, ele próprio expõe, falando da sua família, a sua nova namorada, etc.). Ora, enquanto “diário de viagem” propriamente dito, esperar-se-ia um retrato do local visitado, uma confluência das expectativas e da percepção circunstancial, um confronto entre duas personalidades: a do viajante e a do viajado. O olhar que vem de fora e o objecto observado. Todavia, não há aqui qualquer evasionismo, guia-turistismo, cabinet de curiosités, nem sequer uma moldagem etonográfica (“os italianos são assim”).David B. conta a sua passagem pelas cidades italianas, em curtas estadas, acompanhado pela namorada italiana, Ilaria, as pequenas descobertas das ruas e lojas e pequenas histórias que, como reza na badana, vai desdobrando e fomentando e ampliando. Aliás, a mudança de “poiso” pela parte de David B., se teve um papel de formação e maturidade em L’Ascension du Haut Mal, aqui não é sequer explorado. Se se move, é para criar imagens e narrativas. Confessa a fuga às rotas mais turísticas, demonstra as pequenas adaptações à família da namorada (sobretudo à avó dela, que o narrador compara com um irrequieto, azafamado gnomo de contos tradicionais), revela leituras tidas durante esse período, para desencadear movimentos internos. As suas deambulações servem um outro propósito: o de abrirem caminhos de ficções.
Uma importante dimensão da obra de David B.é o seu recorrente trabalho sobre uma memória à qual podemos chamar bifronte. Uma memória não olha somente para o passado, pode-se abrir como perspectiva proléptica, lançar os primeiros passos em direcções futuras, sejam estas efectivamente perseguidas ou não. A primeira, que olha o passado, opera no interior da obra de David B.: temos neste Journal, como em títulos anteriores, diários de sonhos tidos, revisitações a uma determinada linha da literatura (citam-se, mais uma vez, os romances de Harry Dickson), exploram-se os mundos da tradição judaica e as suas lendas, procuram-se associações com a cultura popular, constroem-se imagens em torno da realidade que a entrosam com um reino fantasioso, metamórfico, fluido. Essas matérias têm a ver com o local, mas sempre de um modo mais amplo que o mero e descritivo guia: os filmes de Fracesco Rosi, sobretudo sobre a figura do mafioso Lucky Luciano, e sua a comparação ao ciclo O Padrinho de Coppola; um encontro com um investigador académico do conceito cultural do sonho; uma exploração das divisões territoriais entre cães e gatos, e a ocupação destes de prédios na cidade de Trieste, seguido de uma visita ao território subterrâneo dos medos (passando pelos reinos dos gatos, dos ratos, das baratas, dos insectos sem nome e finalmente das “coisas” sem nome nem corpo[na imagem, a concatenação metonímica de todos esses "círculos"]); uma súmula da história do messias judaico de Veneza Daoud Ravid e a sua nova torre de Babel [v. última imagem]; livros citados, livros inventados, livros que nunca existiram, trocas de sonhos, e um último relato sobre uma reportagem lida no La Repubblica. Todas elas, as matérias, servem-lhe de pasto à associação com temáticas ou matérias empregues noutros livros, como vemos. David B. faz também uma construção da sua própria torre, coesa mesmo que aparentemente se disperse por trabalhos ora autobiográficos ora de pura ficção (muitas vezes tintada por elementos de género). O último relato, por exemplo, que reconta a história de uma jovem que depois de atacada perde a memória, ficando com impressões misturadas da sua vida anterior, dos seus atacantes, de uma raposa que a guardara e do velho que a salva, é utilizado por David B. da forma magistral que se lhe reconhece para a criação de verdadeiras metáforas visuais... [v. próxima imagem] trazendo ao mesmo plano de representação, à mesma cidadania da imagem, a realidade concreta, as impressões, as projecções, memórias, medos, sonhos. Tudo o que faz parte da experiência humana é tratado pelo autor ao mesmo nível do agencement da matéria de expressão da banda desenhada: o intricado novelo entre imagem, texto e sequência. Este é um protectorado do autor (se bem que outros o exerçam de modos similares, como Fabrice Neaud ou Squarzoni).
A origem da banda desenhada moderna tem, no fundo, uma relação íntrinseca com a literatura de viagens (e o dramatismo que lhe está inerente, o confronto entre duas personalidades ou esquemas mentais, o mesmo e o outro, o si e o estranho), se bem que este território a tenha desdobrado pela via da mais simplificada paródia ou concentração nos pequenos e ridículos acidentes do viajante no seu percurso. É aí que encontraremos as “aventuras” das personagens de Töpffer, e depois as viagens de von Dardel, Doré, Doyle e Bordalo, todas elas contribuindo, à vez e do seu modo, para um aumento cada vez maior da natureza cinética da banda desenhada, que iria desembocar no império das histórias empolgantes de protagonistas heróicos do século XX (o novo livro de Thierry Smolderen, de que falaremos mais tarde, explora algumas destas questões). David B. (mas outros autores também) parece querer inverter essa equação: a viagem serve para um movimento, mas interior. A viagem como modo de auto-conhecimento. No caso de David B. poder-se-á acrescentar auto-criação. As ficções que tece em seu torno são camadas dele mesmo. De modo bem diverso do de Baudoin, também David B. vai contribuindo para o seu “poema contínuo”...
A junção destas pequenas histórias encaixadas no livro presente parece firmar aquela ideia de Walter Benjamin sobre o coleccionador, o qual opera em sinal contrário ao do consumidor, uma vez que liberta os objectos coleccionados da sua utilidade ou valor capital, estabelecendo entre eles uma relação à qual Benjamin chama de “círculo mágico”, fundando-se assim uma “forma de memória prática” (Passagenwerk). David B. não usa estas histórias para organizar uma série ou conjunto centrípeto de significados temáticos, mas como objectos de memória pessoal, criativa. São, agora, as suas histórias. A última, a da rapariga violentada, é um exemplo máximo disso. Um eventual estudo da “matéria original” (a reportagem do jornal italiano) e a sua “versão” desencadearia seguramente as linhas de força dessa apropriação e estruturação.
Ainda que este seja um primeiro volume, pelo que se depreende, de novo, pelo título e capa, estamos em crer que também não haverá qualquer tratamento do “regresso” do viajante, levando ao fechamento da viagem. Uma vez que a viagem é interna, criativa, esse retorno não é necessário, ou melhor, ele está já presente nas chamadas intertextuais – quer aquelas aos livros (e filmes) alheios e citados quer aquelas referentes à sua própria obra. Partir é já regressar.

28 de abril de 2010

Lisbonne: dernier tour. Jorge Zentner e Aude Samana (Les Impressions Nouvelles)

De um país pequeno e periférico como Portugal, o cidadão sente sempre um estranho frémito quando se vê citado ou retratado de um qualquer modo positivo nas ficções dos outros... E os lisboetas que sentem que a sua cidade se vê sempre adiada do papel que poderia ter tido no concerto das capitais europeias, quando a vêem visitada por outros olhos, passam a querer redescobri-la sob esse prisma. Não é tanto vê-la nos dedos de lisboetas honorários como Tabucchi ou Corbel, mas querer perceber como as ideias de vislumbre, de rápida pincelada, de um olhar que é sempre outro se tornam consistentes. De Remarque a Zimler a Mercier, de Tanner a Wenders, enquanto postal ilustrado, cenário mais ou menos vivo ou reconstrução poética, essas Lisboas todas surgem-nos para que as visitemos nós também pela primeira vez, como um fino pano que sobrepomos à cidade que conhecemos. No nosso campo de interesse não há falta de matéria. Em vez do tratamento que se nota num relativamente medíocre livro editado há pouco que tem Lisboa como espaço central, em que ela se vê reduzida a uma meia-dúzia de snapshots sem grande desenvolvimento humano, as imagens criadas pela vontade e letras de Zentner e as pinturas de Samana criam uma cidade nebulosa ainda que colorida, uma Lisboa diluída pela luz, por perspectivas pervagantes e uma quase total distância das personagens do peso da realidade, ainda que ancorada numa ideia de ambiente solar, recuperativo, apolíneo.
Tal como a famosa obra de Conan Doyle, o protagonista deste livro não ocupa o papel de narrador e nem sequer está no centro da atenção contínua da narração. Ou explicando melhor: se a pessoa sobre a qual se centram os eventos da narrativa é aquela que exerce o poder e o fascínio centralizados, a condução cabe a uma personagem que lhe é subalterna. Aqueles papéis da narração, da focalização, da estruturação da narrativa, cabem ao seu companheiro de viagem. Habitamos um mundo em que o mago Tosechi já ocupou o imaginário de um público alargadíssimo. As imagens que nos surgem desse tempo glorioso parece-nos indicar a década de 1920, mas esses saltos no passado servem apenas para contrastar o presente, possivelmente na nossa actualidade, numa Lisboa ribeirinha. O contraste é palpável pela falta de acompanhamento dos tempos pela parte de Tosechi, a lenta ultrapassagem pelos novos espectáculos, novas velocidades, novos entretenimentos. Moreno, o seu agente, companheiro, gentleman’s gentleman, é quem lança os fios que ligam a glória ao declínio, o passado na ribalta e a quase desesperada natureza das errâncias na cidade a que vieram dar, e onde ocupam um pequeno hotel de terceira, longe dos hotéis de cinco estrelas de outros tempos. São os pensamentos de Moreno e as suas acções que encaixam os momentos e as projecções dos acontecimentos. E é através das palavras de Zentner e de belos jogos linguísticos, e metáforas (por vezes, mas poucas, corroboradas pelas imagens), que nos vamos dando conta dessa lenta mas inexorável descida.
Qualquer obra de ficção, qualquer construção humana, por mais simples que seja, mesmo o que entendemos por pequena história ou anedota, passa sempre por um filtro criativo de quem a constrói. É preciso, por isso, jamais esquecer que quando se lê uma história que se está a enfrentar com um qualquer dispositivo artificial. Não há necessariamente uma superioridade estética por uma determinada obra, digamos, narrativa, ser mais complexa ou menos linear do que outras. No entanto, quano uma história se nos apresenta com uma estrutura fragmentária, não-linear, ou inconclusiva, somos colocados numa posição em que o esforço de re-construção, ou pelo menos de relacionamento, que nos é exigido é maior. É esse o caso de Lisbonne, dernier tour. A recompensa caberá a cada um dos leitores, e não é partilhável. Como a um poema, por mais decisórios que sejam os elementos intrínsecos à balização do acto interpretativo, há sempre uma margem amplíssima de manobra para o seu desvendar emocional.
As imagens de Samana, ainda que possam ser irmanadas ou colocadas numa tradição díspar que une Henri Rousseau a Franz Marc e Marc Chagall e ainda, mais próximos da nossa casa, a Loustal, recordar-nos-iam o trabalho de um Miguel Rocha anterior ao presente, mas sem a mesma força de expressão, a mesma luminosidade radiante, a mesma flutuação cromática e ambiental do artista português. A paleta de Samana é mais contida e estreita, o que não obsta em nada à exactidão da expressividade que deseja, nem ao transporte da história do mago e do seu assistente. Há uma acalmia geral que perpassa toda a narrativa que ganha esses contornos graças ao trabalho de Samana, que tanto mostra uma Lisboa de bairros estreitos, fechada, azulácea, à sombra, como outra amarelada, branca, sob a luz directa do sol unida aos reflexos da calçada e que dá a esta cidade a sua luz única. Mais, a procura por um grau de maior amplitude no que diz respeito a humores gráficos, a espectros de cor, realizações emocionais diversas não se equilibraria bem com este pequeno conto cabisbaixo sobre um derrotado da vida e a sua última e derradeira recuperação, precisamente numa cidade que lhe surge como um abrigo e território positivo, mas sem histrionismos, glórias exageradas. É um ambiente familiar, mesmo que houvese sido estranho.
Os actos de magia de Tosechi jamais são revelados. Apenas sabemos que não são meros truques de prestidigitação, ilusões de cabaré, magia de cartão, mas uma profunda e estranha experiência partilhada por um público sensível e positivamente susceptível. A sua verdadeira natureza é suspensa em toda a narrativa, como um bom exemplo de “McGuffin”. Mesmo no fecho, há como que uma revelação, mas ela é tangencial, fugitiva, não tem preocupações de esclarecimento ou fechamento. Bem pelo contrário, é nela que se encerra o livro, abrindo-se totalmente à interpretação, buscando as raízes de um espaço, o de Lisboa, como matéria que sirva de selo à vida de Tosechi.

26 de abril de 2010

Hipotética Fortune # 500. Chris Ware

Se bem que o faça pouco, já aconteceu usar este espaço para pequenas chamadas de atenção ou rápidos recados.
É o caso.
Pela internet circula esta capa que Chris Ware havia ilustrado para a revista Fortune, número 500.
Foi rejeitada, como seria de esperar.
Sem comentários.

25 de abril de 2010

Sex Tape. Thomas Cadène (Casterman)

De estilo muito aparentado com autores tais como Bastien Vivès, Philippe Paringaux, Frantz Duchazeau (e a raiz em Sfar), Thomas Cadène, pela própria matéria temática do livro, entra por alguns territórios contíguos à banda desenhada e ilustração, sobretudo a de moda, como se vê pela primeira imagem escolhida deste livro.
Este é um livro que explora, como força contextual, um tema quase absolutamente contemporâneo, em torno da cultura pop, sobretudo na sua vertente da cantora adolescente do super-pop (Britney Spears, Miley Cyrus) com um pouco de celebridades apanhadas pelo glamour da fama instantânea, sem esforço e depois emasculada pelo próprio monstro que a criara antes (Paris Hilton, Lindsay Lohan), sobretudo se houver uma “sex tape” à mistura. Digo quase absolutamente contemporânea, pois não chega ao ponto da hipérbole de auto-ficção alucinada da pop como o epifenómeno de Lady Gaga, zénite de muitas das experiências tentadas mas não conquistadas pelas estrelas do século XX. Tal como Bloody September, este livro explora aquilo que se poderia chamar de “cultura universal”, que não é mais do que um nome eufemístico para a hegemonia da cultura popular norte-americana impondo-se globalmente através da música, dos filmes, de novas estratégias globalizantes (youtube, etc.) e até da língua (os títulos).
Mas esse é o seu “fundo” de onde emerge uma das personagens principais, Anja, uma ex-estrela pop que vive agora num retiro, uma casa de luxo algures nas escarpas montanhosas da Suíça, e a rede de relações que lança naquele lugar, especialmente com um jovem mirone, Will, proprietário de um bar local, – mas não paparazzi, o que é importante – que a espia, passa-a a espiar a pedido delas mesma, deixa-se espiar, e se dá início a uma relação desequilibrada de jogos ópticos de vigilância e voyeurismo, exibição e um desejo protelado e não-dito, o que quer dizer o mesmo que mal-dito (a mesma construção presidia a um livro anterior, Regards Croisés). A tensão sexual está desde logo presente, mas não tem a ver com a sensualidade directa, da parte dela, nem tem a ver com amor, da parte dele.
No entanto, esta descrição não dá conta do carácter polifónico deste conto, nem da espécie de trama policial que se constitui. A narrativa começa pela focalização de uma jornalista, que entrevista o antigo guarda-costas, e depois a governanta, à procura de saber o que se passou com Anja na altura desse retiro, e antes do seu glorioso e transformativo comeback. Depois seguimos as inquirições de um inpsector da polícia, que interroga uma namorada e um amigo de Will, para descobrir “o que se passou” (um “crime” de que apenas mais tarde aprenderemos). À medida que cada um desses interlocutores e pseudo-narradores ou criadores da narrativaa, a entrevistadora e o inspector, auscultam as memórias das outras personagens, ganhamos acesso não somente a elas mesmo, mas ainda a desdobramentos que seriam impossíveis de pertencer a essas personagens: a perspectiva de Will sobre a sua vida e o que observa de Anja, as relações e analepses de Anja e o que ela observa de Will. Ambas as observações de um pelo outro, Will na câmara fotográfica sobre o salão de Anja, Anja pela câmara instalada no televisor na sala de Will, não têm captação de som. Este facto implica dois jogos interessantes, um narrativo – somos obrigados a querer impor um sentido sobre o que se passa nas imagens sem as compor pelos significados verbais – e outro relativo à banda desenhada – toda ela sempre “muda”, e aqui explorando um segundo grau de sentidos. No entanto, as mais das vezes esses sentidos apenas surgem para serem mais tarde negados ou pelo menos corrigidos.
Ou seja, na verdade, apenas o leitor, tendo acesso a todos estes elementos, é que os consegue ligar, compondo a “verdade”. Esta é elusiva, inacessível, fragmentada em relação a quase todas as personagens da história e mesmo àquelas que tentam recompor a ordem dos factores, como a jornalista e o inspector. Esta estrutura coloca este livro lado a lado a, por exemplo, Le Cahier Bleu de Juillard, levantando os mesmos problemas de representação, de confiança no narrador, de agregação externa dos elementos da narrativa, etc.
Apesar de viver dependente do desenlace surpreendente, e querer “fechar” a moral, Sex Tape não deixa de levantar questões pertinentes no que diz respeito à construção do eu e do outro, quando confrontados precisamente com as expectativas próprias e alheias.
Nota: livro ofertado pela editora. Podem ainda encontrar um “bande-annonce” do livro aqui.

Bloody September. Will Argunas (Casterman)

Um dos artigos da Book Review do San Francisco Panorama é uma fracção de uma tese de Juliet Litman sobre os romances que já se coalescem numa categoria, senão género, a que se dá o nome de “do 9 de Setembro”. Desde o ataque às Torres Gémeas que têm surgido variadíssimas respostas de cariz criativo a esse evento, quer tomando uma posição abertamente política (e seja ela de que terreno for), quer explorando aspectos mais psicológicos ou mais sociais, quer ainda utilizando esse evento como simples contexto, procurando depois vários graus de relação com os eventos centrais dessa mesma obra. Essas respostas têm surgido em todos os campos, do cinema à literatura, e a banda desenhada não tem sido excepção, desde as antologias publicadas imediatamente a seguir que reuniam esforços para apoiar as vítimas a explorações mais pessoais, da de Spiegelman à de Alissa Torres. Litman estuda o modo como ao longo destes anos os autores de romances têm criado uma cada vez maior distância em relação ao evento, não tanto respondendo aos traumas directos e pessoais mas criando um prisma desse mesmo evento, tornando-o cada vez mais multifacetado, e que permita olhá-lo de novo de modos diferentes, que permitam repensar o que ele proporciona. Já não há uma premente preocupação em cartografar o trauma e procurar soluções, mas antes transfigurá-lo para novas dimensões: “A sobejamente conhecida mitologia do World Trade Center é agora empregue para introduzir uma discussão mais recompensadora sobre o trauma contemporâneo – um distanciamento (estrangement) para além e separado dos próprios ataques”.
É precisamente este distanciamento que está em vigor em Bloody September. Tudo aponta para que seja o 9 de Setembro de 2001 a data central, o evento mesmo, deste livro: o título, quer pelas palavras quer pelo aspecto icónico de vidro estilhaçado, a escolha do rosto de George W. Bush para a espinha do livro, mesmo tendo apenas um fugaz papel de referência na trama, as duas torres iluminadas à noite na parte inferior da imagem. Mas não o é. Aliás, o ataque às Torres Gémeas, se bem que se poste num momento dramático da trama central do livro, é apenas um catalisador da viragem da narrativa, uma parte da paisagem: significativa, influenciadora, transformadora, sem dúvida, mas parte da “paisagem social”, da “circunstância”.
Bloody September inscreve-se na linha de um policial relativamente clássico e contemporâneo. Clássico pela tensão, distribuída na atenção dada a todas as personagens por um focalizador universal: o inspector que dificilmente lida com a série de brutais assassinatos que tenta resolver, o assassino e as suas obsessões, o seu modus operandi, a forma como escolhe as presas, parte da vida de algumas dessas presas e suas relações. Contemporâneo por beber de estratégias narrativas da, sobretudo, ficção televisiva norte-americana: vários focos sobre variadas personagens, como vimos, avanço rápido por elipses temporais, acções paralelas, desvios secundários à “história” principal para desdobrar as personagens, total dependência nos diálogos para explicitação da história, acção linear ainda que “cortada”. O uso de rostos de actores famosos para algumas das personagens – o inspector tem o rosto de James Gandolfini (Tony Soprano), o seu chefe o de Clint Eastwood, o da namorada da vítima “principal” o de Gina Gershon (que fez um papel similar em Bound) – também ajuda nessa direcção interpretativa.
O final da narrativa não é, em termos morais, satisfatório. Mais, nunca é dada uma justificação para as acções do assassino. Talvez porque o autor seja inteligente o suficiente para não querer subsumir a “razão” destes assassinatos a uma chave – maus tratos em criança, um abuso sexual reprimido, uma infância ou adolescência difícil, etc. Desta forma irresolvido, o “mal” não ganha um rosto explicado verdadeiro, e dilui-se como que na natureza mesma do mundo. O inspector tenta perceber o sentido dessas acções, quando o assassino lhe escapou, literalmente, por entre os dedos. E é nesse momento, em que intenta uma justificação perante Deus (ele fala para uma das vítimas, mortas à muito, mas falar com os mortos é dirigir-se a uma ideia de Deus) que ocorrem os ataques, interrompendo esse sentido quase atingido. O que se segue é uma pouco subtil mas não pouco irónica transformação do alívio do assassino na crescente preocupação sobre outros “suspeitos”, que ainda hoje sofrerão essa consequência: os árabes, mesmo os árabes-americanos.
Bloody September não é sobre o 9/11, mas utiliza todos os discursos tecidos em seu torno para re-elaborar uma possível maneira de questionar o que vemos como “o mal”.
Nota: livro ofertado pela editora.

Lutte Majeure. Céka e Boris Joly-Erard (Casterman)

É inevitável que estratégias descobertas por grandes autores, no seio da sua experimentação e pesquisa holística, seja mais tarde transformada em mero tecnicismo por outros autores, o que não é proibido, mas diminui substancialmente a pertinência e a força dessa mesma estratégia, precisamente porque não o é. Repetimos, como uma fórmula: não é uma estratégia, é mero tecnicismo.
Este livro é, de uma forma resumida, sobre o concerto de estreia da 7ª Sinfonia de Shostakovich em Leningrado, no dia 9 de Agosto de 1942, dia em que Hitler havia jurado invadir a antiga Leningrado. A cidade estava sitiada pelas tropas nazis, esfomeada, com frio, moribunda, o peso da política de Estaline fazia-se sentir igualmente, e a última coisa que se desejaria fazer era um concerto de gala. Soldados passaram as linhas alemãs com a missão de trazer uma partitura do já então herói e mestre Dimitri Shostakovich, para que servisse como uma espécie de “música de resistência”, patriótica, da parte dos Sovietes face ao monstro Nazi. Os resquícios da orquestra conseguiram-se juntar, e no dia 9 de Agosto, sob o som dos canhões de defesa, os acordes fizeram-se ouvir pela primeira vez... Bien trovato, e pouco importa se historicamente não é totalmente verdade. Enquanto narrativa, é drástica, melodramática, rimbombante, tal qual os filmes soviéticos de propaganda feitos na época, de que, passe a publicidade, a colecção “Grandes Clássicos do Cinema Soviético”, da Midas, é um bom catálogo (Grigory Chukhrai, Mikhail Kalatozov e Elem Klimov [este último com Vem e vê, sobre o massacre de Khatyn, que o presidente polaco recentemente falecido iria comemorar]).
C]eka, o argumentista, e Joly-Erard, o desenhador, contam a história dos intervenientes neste episódio (uma jovem intérprete de Leningrado, os seus colegas de orquestra, o jovem soldado que atravessa as linhas com a partitura, os oficiais da cidade sitiada, os cidadãos em geral) representando-os como porcos. E é aí que surge aquela transformação de uma estratégia num mecanismo simples. Se em Maus, apesar de toda a controvérsia suscitada, Spiegelman tornava essa opção de representação numa necessidade e princípio ontológico da sua exploração (e à qual metia em causa de quando em vez no interior da sua narrativa), neste caso, qual será o propósito? Os alemães são representados, brevemente, igualmente como porcos. Não há portanto uma busca de diferenciação. Tratar-se-á de uma mera escolha estilística do artista, que usa a mesma linha noutros trabalhos? Joly-Erard confessa em algumas entrevistas (ver o seu blog) que não tinha a “energia” para desenhar seres humanos e que até certos aspectos mais violentos da história, como o canibalismo, acabam por ser menos gráficos desta forma. Mas será isso verdade? Não terá este autor responsabilidade de encontrar nessa representação um valor acrescido de sentido? Não seremos nós, leitores, livres de encontrar aí uma força que poderá não nascer senão das circunstâncias?
Por um lado, poderíamos encontrar nesta escolha como uma espécie de homenagem ao Triunfo dos porcos, procurando um denominador comum de representação e, no seu seio, a diferenciação moral entre eles: “alguns são mais que outros”. Por outro, poder-se-ia pensar num certo grau de desumanização patente pela violência da guerra... Todavia, quer pelo facto de se representarem momentos no “presente” (uma outra apresentação da 7ª Sinfonia em 2006, com os velhos músicos sobreviventes), com as personagens ainda como porcos, quer por se revestir todo o livro de uma espécie de neo-propaganda, da heroicidade russa face aos nazis (tantas vezes preterida em relação aos ingleses ou norte-americanos), nem uma posição nem outra “cola”. Fica-se suspenso na razão dessa representação animal.
Durante uma fase da sua vida, Shostakovich foi por necessidade financeira pianista numa sala de cinema; as suas improvisações eram de tal ordem que havia amantes de música que o iam escutar, independentemente da “fita” que estivesse a passar, já que o jovem músico não seguia de forma alguma as partituras medíocres que existiam como modelos. Uma das consequências dessa fase da sua carreira, ainda que alimentar, foi o ter-se tornado um pianista exímio, acima mesmo do virtuosismo que já revelara em criança. Estas informações servem-nos duplamente. Em primeiro lugar, diegeticamente: ajudam-nos a decidir sobre a identidade de uma das personagens que nos parecera relativamente misteriosa até um determinado momento. Pouco importa se historicamente é impossível ou apenas improvável, ou se realisticamente é pouco plausível. Em segundo lugar, porque nos garante que a dimensão da relação entre a música e a sua funcionalidade iluminará a própria estrutura do livro, a relação entre essa sinfonia e o propósito deste livro. A tal espécie de propaganda a que aventámos antes.
Shostakovich foi um compositor “oficial” da União Soviética, quer na escrita de música para filmes, heróicos, quer nos seus quartetos, quer sobretudo na relação pessoal que foi tendo com os circuitos estalinistas. Todavia, como todas as relações com esse tipo de poder, haveria sempre uma linha de dissensão. É bem possível que Lutte majeure (em francês, a 7ª Sinfonia diz-se de “ut majeur”) explore a dimensão propriamente musical, secreta para quem a não sabe ler, como nós. Lemos algures que o compositor explorava variações e repetições das notas D [Ré], Eb [Mi bemol], C [Dó] e B [Si], a transliteração em alemão – e na sua notação particular, diferente da portuguesa, herdeira da nomenclatura medieval – do seu nome. É bem possível, dizíamos, que existam subtilezas destas a explorar nesta sinfonia e, daí, neste livro. Está porém fora do nosso alcance.
O autor não se coíbe, apesar dessa dimensão de heroicidade do povo de Leningrado, e na sua entrega de corpo e alma, literalmente, para essa resistência através da música, de representar imagens alternativas à perspectiva oficial, e chegando mesmo a garantir aspectos críticos no episódio histórico: aponta-se a cegueira e prepotência de Estaline, ilumina-se o medo da polícia secreta do Estado, com orelhas e bufos por todo o lado, revela-se a incessante propaganda de estado, a terrível mortandade, a fome... e formas de a solucionar horrendas.
Mantemo-nos sempre a uma distância dessa situação toda, com estes personagens-porcos, mas a tensão está lá.
Nota: livro ofertado pela editora.

23 de abril de 2010

Alguns zines. AAVV



No seguimento das considerações sobre ilustração, houve necessariamente pontas que ficaram por fiar. Que sucede, por exemplo, quando se unem ilustrações e textos criados cada um na sua própria circunstância e desligados? Um editor pode querer publicar uma tradução de um texto dispensando a ilustração original e juntar-lhe um desenho que artista havia feito por recreio próprio, sem qualquer intuito editorial. Que sucede quando desenhos que foram feitos ao acaso, talvez apenas respondendo àquelas circunstâncias quotidianas do artista, tipicamente chamadas de inspiração, se acabam por juntar num determinado espaço, como nesse espaço privilegiado a que se chama “livro”? Ou os seus avatares: revistas, fanzines, artzines, publicações, caixa de postais, etc.
De novo, essas questões estarão mais associadas às condições de produção e o que nos deve importar sobretudo, na sua leitura, é como nos surgem enquanto textos formados e fechados como tal. É bem possível que Marta Monteiro e John Kearns tenham feito os seus desenhos, cada um, ao acaso, em momentos diversos, talvez um ou dois em modo mais coordenado (seguindo um tema, uma forma, uma ideia desdobrada), e depois o convite de Craig Atkison e a galeria Dama Aflita tenha catalisado num corpo mais coeso: uma exposição, um catálogo, um livro. É bem possível que Alex Vieira, Zograf, 81-85, Teresa Câmara Pestana, Bertoncelj não soubessem que iriam estar juntos numa publicação brasileira, ou o que os uniria, mas no momento em que se encontram entre as capas de Favo de Fel passam a poder ser vistos, ali, como um grupo relativamente coeso. O mesmo se passa com Massive.
Não nos alargaremos nas considerações de cada título, mas tão-somente uma ou duas linhas sobre cada um.
Favo de Fel. AAVV. “Antologia internacional de quadrinhos” dos herdeiros do punk e outras linguagens alternativas às mais bem-comportadinhas agendas da sociedade da superfície. Como será de esperar, não se encontrarão aqui narrativas lineares ou uma abordagem gráfica que prime pelo virtuosismo académico. A expressão acima de tudo, e a opinião virulenta contra os aspectos mais cansados da sociedade “normal” (no sentido doente de Arno Gruen): da televisão à religião organizada, do desemprego às estúpidas expectativas no progresso tecnológico, dos machismos sobreviventes à escatologia universal, com muita porrada e mosh pelo meio. Como sempre também, a esmagadora maioria dos caminhos são algo inconsequentes e juvenis, esbracejar contra a maré é próprio de uma circunstância mas em pouco a altera. T. C. Pestana tem aqui publicado um excerto dos Postais de Viagem, e mais uma divertida rábula sobre a relação que a Igreja tem com a sexualidade humana. Sobrevivem ainda os trabalhos de Matjaž Bertoncelj, 81-85, Zograf, Ron Selistre, Alex Vieira e uma mão-cheia de ilustrações. Blog.
Massive. AAVV (CCC # 8, Chili Com Carne). Eis um outro daqueles objectos que reune desenhos soltos, sem qualquer relação a um tema (perceptível), texto, ou vontade centralizada. Manda-me uns desenhos que depois logo se vê. É o que se vê aqui, de facto. As participações são igualmente variadas, amplas e internacionais. Há desde desenhos limpos a outros mais carregados, uns de temas mais leves, belos, serenos, outros atascando-se numa qualquer violência, quer gráfica quer de significado. A edição opta por ter cada caderno a uma cor de papel específica, mas em nada isso informa a sua leitura, a não ser a sua própria materialidade. Massive recorda também outro tipo de referências musicais, o dub... como ele, a remistura, a fragmentariedade, a devolução alterada parece presidir a este junção. Esta antologia foi manobrada pelo grupo Hülülülü (Ricardo Martins e Margarida Borges) mais os suspeitos do costume da CCC. Assim encontrar-se-ão muitos dos nomes que compõem a história de um grupo relativamente coerente (André Lemos, João Maio Pinto, Jucifer, Filipe Abranches, Pepedelrey, outros) passando para outros artistas nem sempre presentes no circuito dito alternativo (Alex Gozblau, António Jorge Gonçalves), companheiros de outros círculos editoriais/artísticos (Marta Monteiro, Rui Vitorino Santos, Alex Vieira, outros), passando por artistas internacionais de vária índole (Tommi Musturi, Warren Craghead, Ilan Manouach, Pedro Franz, Stephane Prigent, Jean Pierre, e muitos outros).
Subir a montanha/Up the mountain. Marta Monteiro (Café Royal/Dama Aflita). Fanzine-catálogo da exposição de Marta Monteiro na galeria Dama Aflita, este pequena publicação reúne até 25 desenhos, dependendo da maneira como se os contam (incluindo a capa). Desconhecendo o que levou M. Monteiro a criar estas imagens e a dar-lhes esta ordem na publicação (e fazer a publicação), houve porém uma ideia que imediatamente me veio ao espírito. Todavia, não a divulgarei já. Alguns desenhos parecem conter uma micro-narrativa pelos seus elementos repetidos: três deles mostram personagens cujas cabeças parecem estar cobertas por caixas, seguidas de dois grupos, familiares, com uma espécie de véus; três mostram um motivo de ossos espalhados; outros mostram ainda – pela técnica, pela representação – o que parece ser uma mulher a subir à montanha até se sentar no seu pico, com uma clara interpretação sexual possível; alguns têm estratégias que recordarão a imitação de retratos antigos, cenas interiores, cenas familiares, postais de Verão, fotografias de recordações. Uma mostra um rosto bipartido: um homem e um tigre. Há aqui, portanto, uma tensão qualquer em torno de ideias-chave, que tanto passa pela ideia da família tradicional como uma espécie de conceito a rever, a expressão livre de uma sexualidade consciente, um caminho de progresso pessoal, várias imagens que se podem revestir de um significado simbólico... A ideia que me surgiu de imediato foi a letra de Laurie Anderson para It was up in the mountains. O mesmo sentimento de estranho familiar, o mesmo ritmo de coisa absurda que vai e vem sem explicações, e que invade a vida e a abandona: “It was up in the mountains. We had this ceremony every year. We had it and everyone from miles around came in for it. Cousins, aunts, uncles, and the kids. Grandmothers, grandfathers ... everyone. And we set it up around this big natural pool. With pine trees and palm trees. All the trees were there. And we had thousands of those big urns - you know the kind. And everyone would dance and sing, and it lasted for three days. Everyone cooked and looked forward to it all the year.
Well one year, we were in the middle of it, and I was just a boy at the time. Anyway, it was evening, and suddenly a whole lot of tigers came in. I don’t know where they came from. They rushed in, snarling, and knocked over all the urns, and it was really a mess.
Well, we spent the whole next year rebuilding everything. But in the middle of the ceremony the next time the same thing happened. These tigers rushed in again and broke everything and then went back into the mountains. This must have gone on four or five years this way - rebuilding and then the tigers would come and break everything. We were getting used to it.
Finally we had a meeting and decided to make these tigers part of the ceremony - you know - to expect them. We began to put food in the urns, so the tigers would have something to eat. Not much at first ... crackers, things like that. Then later we put more food until finally we were saving our food all year for the tigers.
Then one year, the tigers didn’t come. They never came back.”
It'll end in tears. Jaakko Pallasvuo (Café Royal). Este livro tem duas pequenas histórias, de alguma forma relacionadas se imaginarmos que o protagonista e o seu ambiente é o mesmo. Apesar dos objectos representados serem naturais – paisagens, uma cabana numa montanha, flores, animais, uma televisão cheia de chuva – o desenho em si recorda o texturado mas livre e caligráfico trabalho de Mat Brikman. No entanto, as narrativas são mais aparentadas à cena da banda desenhada alternativa “humanista” de Pekar, Ware, Clowes ou outros autores. Se ao princípio parece existir um desfasamento entre o que é narrado pela voz do protagonista e as imagens (recordando-nos do magistral exercício de Chris Ware na história “I Guess”, publicada em 1991, na RAW 2.3), rapidamente no apaercebemos ser apenas uma suspensão do desvendamento de uma trama bastante nítida, mas não por isso menos pertubadora. Uma curiosa peça sobre a possibilidade de empregar formas gráficas inovadoras na banda desenhada para retornar a histórias simples.
As things go. John Kearns (Café Royal). De ponta a ponta, e quase invariavelmente, este livro apresenta páginas com uma grelha de 3 x 4 vinhetas, com um pequeno friso inferior. Mostram-se personagens, retratos de rostos, estranhos objectos e objectos banais, animais e monstros, espaços. Tratar-se-á de uma taxonomia e de uma colecção sem critério agregrando elementos com os quais o leitor é convidado a criar a sua própria narrativa? Estilisticamente, Kearns parece pertence à mesma família de referências de Pallasvuo, se bem que o nome do Fort Thunder com o qual o aproximaria mais é C.F. Este livro convida o leitor a reler e recombinar cada elemento, tornando-o potencialmente num livro sem princípio nem fim, infinito como “o de areia” de J. L. Borges.
Nota final: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana pela oferta do Favo de Fel e a Marcos Farajota pelo de Massive. À galeria Dama Aflita pelo seu projecto.

20 de abril de 2010

San Francisco Panorama [McSweeney’s # 33]. AAVV (McSweeney’s)


Tal como o mapa de Borges, a melhor forma de dar conta de todos os domínios, dimensões e facetas deste projecto seria repeti-lo, como um simulacro completo. Não é possível. Telegrafemos a circunstância. A revista de Dave Eggers, a McSweeney’s Quarterly Concern, no seu 33º número, respeitando a sua qualidade proteica, resolveu assumir a forma de um glorioso jornal de Domingo da tradição norte-americana. Uma experiência única mas que lança, a um só tempo, a ficção da existência de um jornal desta estirpe na costa oeste dos Estados Unidos e uma ideia que deseja recuperar, relançar ou repensar as possibilidades específicas de um jornal em detrimento de outras fontes de informação (nomeadamente as digitais): peças jornalísticas de maior fôlego, de investigação ou opinião verdadeiramente sustentada, apreciações críticas mais alargadas de livros ou música, páginas de banda desenhada que tirem partido das folhas gigantes a cores destes jornais “desaparecidos”, um design aqui inovador e apelativo e plasmado ao conteúdo, ali minimalista e simples e sofisticado e eficiente na veiculação do texto. Outros domínios importariam explorar, se soubéssemos como: as estratégias de financiamento e publicidade, de venda e distribuição, de sustentação política, etc. O San Francisco Panorama é uma espécie de resposta positiva e esperançosa para o jornalismo e a edição de jornais nos Estados Unidos, mas presumimos que parte dos problemas sejam idênticos aos de todo o mundo, inclusive Portugal.
O SFP, estou quase seguro, tornar-se-á uma fonte de inspiração para muitas pessoas, e imagino que muitos professores de design o comprarão para estudar e explorar junto aos seus alunos, assim como, claro, jornalistas, escritores, publicistas, e todos os azimutes relacionados de uma forma ou outra com este objecto cultural que é o jornal. A dita morte da “imprensa” (print media) ou encontra aqui um épico desfibrilador ou uma gloriosa pedra tumular (o mais provável é que não seja nada tão drástico, mas será certamente uma referência nos próximos anos).
Como poderão ver pelo vídeo que preparámos, o jornal contém as seguintes partes: um caderno principal, local, internacional e cósmico (tem um artigo sobre o ciclo solar), com um encarte especial totalmente devoto à nova ponte entre São Francisco e Oakland e aos seus problemas, um caderno de opinão e análise (desde as sobrancelhas da primeira dama aos direitos dos nativos norte-americanos, passando por textos e desenhos de crianças à des-razão biológica da violência), dois cadernos de artes (um mais similar a um guia, outro com resenhas), um suplemento de peças longas (com artigos locais e internacionais), um suplemento de desporto mais encarte de Stephen King e poster duplo, outro suplemento intitulado Food (desde receitas a artigos de fundo a críticas a restaurantes), uma secção de banda desenhada (mais brinquedo-em-papel de Chris Ware), uma revista com variados artigos mais ou menos alongados, e uma revista literária (entrevistas, críticas e resenhas, peças inéditas). Ainda tem um pequeno “panfleto” no qual se explicam os objectivos, as várias secções e opções, se apresentam números e contas, listam-se os colaboradores, e se explicita a cronologia do projecto. É monumental.
É claro que nem todos – nenhum! – os projectos de jornal têm cerca de um ano para criar um único número (apesar deste conter notícias do próprio dia em que saiu, 8 de Dezembro de 2010). Trata-se de uma espécie de bolsa de ideias, desejos e intenções que poderão ou não funcionar como farol. A imitar, a melhorar, a inflectir ou até evitar, conforme o posicionamento dos seus leitores críticos. Todavia, enquanto aquela ficção que apontámos acima, provoca de facto uma breve felicidade sobre um mundo alternativo melhor. Excelente objectivo, e cumprido.
Temos de confessar que, à data da escrita deste texto, não esgotámos a leitura de todas as peças que nos parecem interessantes (outras, como as estatísticas de futebol americano, ou planos de fugas gás numa mina abandonada, foram imediatamente colocados de lado, ainda que imageticamente sejam fonte de interesse para estudo de design e infografia, por exemplo). Mas algumas peças poderão despertar a curiosidade mal sejam citadas: Salman Rushdie escrevendo sobre Kara Walker, Michael Chabon sobre os Big Star, uma apreciação da obra de J. G. Ballard, Stephen King com um suplemento sobre uma temporada mítica do baseball, um dos artigos de Food sobre uma receita caseira de uma bebida fermentada andina chamada chicha que promete estranhos efeitos, outro ensinando os passos necessários à matança, esquartejamento e preparação da carne pronta a grelhar de um cordeiro, um diagrama explicativo de um dos muitos magníficos murais da cidade (e imagina-se que poderia ser uma secção continuada ad infinitum, e mais maravilhosa ainda ao entrar na zona da Mission), um artigo de fundo sobre o concurso Mr. Romance Cover Model, onde vários homens tentam ser o próximo “Fabio” (interessante para estudantes de uma linha da ilustração), uma mesa-redonda sobre o estado do festival de cinema de Sundance, uma ideia de Chipp Kidd de redesign dos informativamente confusos bilhetes da Amtrak (análogos aos dos de avião), e a Book Review espalhando nas suas páginas uma pequena antologia de poemas de quatro versos (inclusive um tipicamente disruptivo de John Ashbery), entre muitas outras pérolas literárias (inclsuive magníficos contos de George Saunders, Roddy Doyle, Dicky Murphy e Seth Fried, o qual preparou um trailer) e de reportagens investigativas. Até a secção de passatempos é estranha, inovadora, inteligente e atenta à diversidade humana e cultural.
Sendo um jornal, tem artigos sobre a economia local, que vai desde a Bay Area a toda a Califórnia, e abordam-se problemas como a especulação imobiliária e a tremenda crise actual, a falta de transparência em obras públicas e decisões políticas, impactos ecológicos em áreas gigantescas e as suas implicações económicas, sociais e culturais, escândalos políticos e abordagens menos convencionais de determinados problemas regulares.
Claro que, neste nosso espaço, a atenção vai particularmente para as áreas da banda desenhada e da ilustração. Esta última está presente e em força em toda a publicação. Mostramos no vídeo apenas algumas daquelas que mais nos suscitaram a atenção, e que acompanham desde artigos de fundo a caixas menores, que fazem elas mesmo a peça principal ou decoram tangencialmente a página. A banda desenhada encontra-se em vários momentos e locais do jornal, mas o destaque vai para o suplemento de banda desenhada propriamente dito, onde se encontrarão páginas (inteiras) de Seth, Daniel Clowes, Adrien Tomine, Art Spiegelman [cuja banda desenhada podem baixar aqui], Erik Larssen, o spread maravilhoso, como sempre, de Chris Ware (já para não falar do brinquedo de papel de montar e outros materiais), e tiras mais curtas menos curtas de Gabrielle Bell, Ivan Brunetti, Eric Drooker, Kim Deitch, entre outros. Se bem que os editores do SFP apontem essa inclusão como parte da estratégia de recuperar os leitores mais jovens, lançando o suplemento dos comics para o público infantil (as bandas desenhadas existentes noutros locais do jornal revestem-se imediatamente de “morais” ou “pesos políticos” bem diversos), e tendo em consideração que a esmagadora maioria dos autores apresenta pequenas variações do seu trabalho regular para estas páginas através de histórias contidas, legíveis por todas as idades, etc., o próprio facto de existirem neste formato em particular torna-as revestidas de um interesse particular, associando-as a projectos tais como a Kramer’s Ergot #7, que citam e imitam, as edições recuperativas da Sunday Press, e até experiências mais alternativas como as de Frank Santoro, Paper Rodeo, Kuti Kuti, Aooleu, Diamond Comics, Modern Spleen, e até a edição original do Journal de Guerre, de Tardi.
Ler estes suplementos, num local público exíguo, poderá incomodar a pessoa ao lado. Ou fazer invadir o seu espaço com leituras novas. É o que se deseja.

Ilustrações para Edgar Allan Poe, O Corvo, por Gustave Doré (Librimpressi)




Há uma forma de construir textos que me parece um pouco abusiva e que apenas falsamente parece garantir uma pista de interpretação crítica sobre uma determinada obra ou, pior ainda, sobre as “intenções” do autor. Essa forma é a de computar a data da morte e caminhar para trás, iluminando os últimos passos, actividades, eventos ou mesmo obras à luz dessa sombra.
Factualmente, é verdade que estas foram as últimas imagens criadas por Gustave Doré. O livro só veio a lume mesmo depois da sua morte, em 1883, aos 51 anos. A mãe, talvez a mulher de quem foi mais próximo, havia morrido dois anos antes, o que significou um grande abalo emocional e moral. Os últimos anos foram vistos como o de uma amarga batalha para ser aceite como “artista maior” (de pintura, a óleo e aguarela, e escultura) mas esse reconhecimento nunca veio. Mesmo o sucesso como ilustrador de livros já não tinha o mesmo sabor de anos antes, uma vez que a sua produção incansável e imparável diminuia o impacto de cada nova prestação e o desprezo da intelligentsia francesa, cuja aceitação almejava. A sua recepção nos países anglófonos era diferente (tal como é neles a apreciação de géneros tais como a ilustração, a aguarela, e até a short story).
É um pouco difícil compreender à partida o valor e importância de Doré. Talvez por vivermos num tempo que não só passou pela sua época mas outras que a vieram a colocar num solo cada vez mais recuado, o vejamos como um representante, maior sem dúvida, mas representante (isto é, não único) de uma época. Apesar de ser francês, Doré viveu e trabalhou para Inglaterra numa fase importante da sua vida, e assim ele é um autor da “ilustração vitoriana”. As imagens de que Max Ernst se apropriaria mais tarde para os seus roman collages reequilibrariam essas imagens antigas numa nova óptica. Gorey faria outra acção, diferente, sobre uma mesma área fantasmática de referência.
Mas Doré era único. Não era apenas o facto de ter sido um prodígio, agregando logo aos 7, 8 anos rasgados elogios a desenhos guardados até à idade adulta. Não era apenas o facto de ter começado a sua carreira como um fenómeno adolescente para a Maison Aubert com álbuns de banda desenhada, primeiro imitando Töpffer, logo depois reinventando essa linguagem. Não era apenas por ser tornar rapidamente, e tão jovem, um dos artistas mais importantes dos periódicos ilustrados de Paris, cruzando-se com Philippon, Bayard, Cham, Gavarni. Não era apenas o facto de ser um desenhador exímio e rápido, terminando uma ilustração num tempo até então inesperado, e com o grau de acabamento e equilíbrio que se lhe reconhecia. Não era apenas o facto de ser um perfeccionista e procurar os melhores gravadores com quem trabalhar (o que nem sempre correra bem, na verdade). Não era apenas por desenhar directamente nos blocos de madeira da gravura. Não era apenas o facto de ser um bon vivant, bom comensal, amigo de festas, violinista, e à sua maneira, aventureiro. Não era apenas por flutuar entre um desenho de gargantuescos e meramente esboçados esgares e caretas para alguns trabalhos e composições clássicas, densas, cheias de simbolismo e subtis aberturas à interpretação. Era por tudo isso, pedaços da sua biografia e carreira, carácter e anedotário, e mais: Doré reinventou a forma como entendemos a beleza possível das ilustrações em livros. Se tivermos acesso a qualquer livro ilustrado na mesma época, rapidamente nos aperceberemos da deslavada e frouxa capacidade dos demais artistas. Havia grandes caricaturistas, sem dúvida, e desenhistas. Na revista inglesa Punch, por exemplo, sobrevivem uns quantos nomes, de John Leech a John Tenniel, de Richard Doyle a Maurier, e uns poucos outros, mas a maioria era medíocre. E se se procurarem outras publicações, sem condução, é provável que tropecemos em imagens negligenciáveis. Mas nesses casos (a esmagadora maioria) não estamos a falar de ilustradores de livros literários. Ler Dickens ganha com as imagens de “Phiz” Browne e George Cruikshank; as imagens de Edouard Riou, Henri de Montaut e outros aumentava as expectativas na leitura de Verne; a Alice de Carroll não existe no imaginário sem a ganga que lhe apôs, e magnificamente, Tenniel. Mas quase todos eles são, digamos, “ilustradores de uma nota só”.
Doré desenhou para textos atravessando espectros inteiros de humores e géneros. Desde as vinhetas de comédia leve para Paul Lacroix às expressões satíricas e ribombantes para Rabelais, da melancólia, calma poesia das personagens para Tennyson à épica monumentalidade e gestualidade da Bíblia (para mais, no inglês da versão do Rei Jaime), das fantasias para Cervantes, Shakespeare ou Perrault, ao sublime teatro para A Divina Comédia, dos rabiscos para Munchhausen ou Croque-Mitaine aos retratos da moderna e rápida Londres. O escopo é, a um só tempo, titânico e proteico.
A verdade é que O Corvo, de Edgar Allan Poe, é a sua última obra. O trabalho irmana-se dessa forma com as imagens que compôs para The Rhyme of the Ancient Mariner e Orlando Furioso (se bem que este tenha inúmeras spot illustrations): composições de página inteira, com as personagens usualmente ao centro, como se numa boca de cena contraída, e um espaço pejado de informações visuais, com áreas sombrias. O desenho é mais contido igualmente, procurando a anatomia perfeita, uma expressividade credível, menos espantosa graficamente (do que para Rabelais ou Cervantes) ainda que dramaticamente exagerada.
Hellmut Lehmann-Haupt, numa pequena obrinha dedicada ao ilustrador francês, apesar de cair na mesma – a meu ver errónea – posição de pautar o trabalho retrospectivamente a partir da morte do artista (tal como Dan Malan, outro biógrafo-especialista, citado nesta edição da Librimpressi), aponta precisamente para o facto de que a força de Doré se encontra no “realismo da sua fantasia, a solidez das suas visões” e “a concretude da sua imaginação”. Aliás, esse bibliómano, escrevendo em 1943, leu também os livros de Ernst, conhece o Surrealismo, e pode fazer o seguinte contraste: “Está a um passo da abordagem Surrealista. A diferença está em que Doré tomou imagens mais convencionais, e a fantasia que estava já formada e aprovada na literatura”.
Discutivelmente, e para nos apressarmos a entrar na leitura das imagens de Doré criadas para o poema de Poe, é essa também a plataforma onde se encontram alguns dos problemas na apreciação das opções de Doré. É que se trata de uma escolha que, com os mesmos elementos sopesados, aquelas características que podemos acordar serem objectivas nestas imagens (a matéria da representação, os equilíbrios entre luz e sombra, a disposição dos corpos no espaço, a gestualidade), podemos tanto vê-las como traduções magistrais dos versos de Poe como estranhas e abusivas fugas. Antes do mais, convidamos o leitor a munir-se com alguns dos apontamentos aqui avançados a propósito das ilustrações de Filipe Abranches a propósito da Obra Poética Completa de Poe, sobretudo no que diz respeito à obrigatoriedade de traduzir estas obras sempre para cada nova geração – textualmente, do português de Pessoa ao de Margarida Vale de Gato, ou o espanhol de Bonalde, nesta edição, e visualmente, de Doré a Abranches – mas também ao que foi dito sobre o “fantástico” segundo Todorov que Poe cumpre exemplarmente, e aindas as considerações alongadas sobre a ilustração como tradução num texto recente.
Sendo este um pequeno poema narrativo, mesmo que haja zonas de pressão interpretativa livres, existem suficientes factores objectivos de descrição que permitem apontar aos elementos que devem estar presentes: o jovem protagonista sem nome, o corvo que lhe entra pela sala de estudo, a própria sala, o ambiente de serão de Dezembro, a memória da amada morta, o busto de Palas Atena por sobre a porta, a luz que nela brilha, a inexorabilidade da palavra final “nevermore” (traduzida por Pessoa e Gato como “nunca mais”).
Doré opta por aproveitar as pistas fornecidas de imediato nas primeiras estrofes para encontrar o seu caminho de criação imagética: a fogueira lançava na penumbra, que ela mesmo rasgava, (Poe-Pessoa-Gato) “ghost”-“sombras desiguais”-“formas espectrais”, o som das cortinas levam o protagonista a imaginar “fantastic terrors”-“estranhos horrores”-“torpes horrores fantasmais”, e tudo o que sucederá lhe fará recordar incessantemente Lenora (cujo nome é evitado totalmente por Bonalde e Pessoa, mas não Gato). Voltando às frases citadas de Hellmut Lehmann-Haupt, o que Doré faz é garantir à fantasia uma realidade, às visões uma solidez, à imaginação o concreto. Essa realidade, solidez e imaginação está presente nas imagens. Vemos o jovem homem rodeado do que são apenas espectros, palavras e memórias intangíveis no texto. Quer ele, “real” naquele universo diegético, quer esses mesmos espectros, apenas “imaginados”, “fabricados”, “urdidos”, ganham cidadania imagética em termos idênticos. Quem olhe apenas as imagens, imaginará que o jovem tem realmente a amada aos joelhos enquanto lê, que anjos se passeiam com Lenora, que esses mesmos anjos lhe atravessam a sala, que espectros o aguardam do outro lado das portas e das janelas, que rostos sem nome ou que reflectem aquela que é nomeada habitam o interstício das sombras na luz cortada pelo corvo, que uma velha esfinge se recusa a colocar-lhe um enigma, o qual é sempre uma esperança de solução, que as cortinas podem servir de estranho e volátil Letes, que as paisagens fúnebres lhe guardaram um lugar, que a morte o aguarda, paciente... As imagens que Gustave Doré cria não apenas retratam o mundo real, tangível, perceptível do protagonista do poema de Poe, como fazem surgir essas sombras irreais das suas impressões interiores. A ideia é clara, para Doré: a obsessão pela morte de Lenora molda uma sempre permanente sombra à frente dos olhos do jovem, mesmo que sejam apenas os olhos da alma. Doré tão-somente revela essa percepção das sombras.
Algumas imagens abrem-se mesmo a perspectivas fora do quarto, e lançam-nos aos hipotéticos mundos irreais, de sonho, de pesadelo ou apenas desejados do protagonista: o paraíso onde ele deseja ou imagina que Lenora e os seus anjos se encontrem, o cemitério que o espera, a desolada paisagem, lá fora, em que finalmente a última fímbria de esperança de rever Lenora é levada sob o voo do corvo, o qual servira de voz última ao esmagamento dessa mesma esperança...
Porém, talvez seja esse precisamente o abuso de Doré. Se o poema se inscreve de facto no campo do fantástico, em que a perspectiva do que é sentido e experienciado apenas se ancora em quem descreve a acção, e se nos torna impossível crer se ocorre mesmo ou não – mesmo que apenas nesse mundo ficcional, ao contrário do campo do maravilhoso, em que não há dúvida de que o descrito é real nesse mundo –, e aquilo que importa é criar essa zona de indeterminação, então Doré faz pender a escolha para a presença tangível dessas percepções. Tal como David B. o fará um século mais tarde em L’Ascension du Haut Mal, a realidade, a memória, o sonho e a ilusão têm direito de representação no plano de composição sem quaisquer diferenças. Todas participam no mesmo grau de presença gráfico. Talvez o passo na direcção do juízo de valor em relação a este trabalho – é “bom” ou é “enfraquecedor” em relação ao texto de Poe? Obriga-nos a relê-lo de modo diverso? – seja um passo desnecessário. Fiquemos apenas à beira dele.
Uma última nota fica para a qualidade desta edição: o interesse da sua paginação simples, a resolução da impressão, das tramas, da nitidez das linhas que compõem as gravuras é assombrosa. Mais uma vez, o editor, Manuel Caldas, apresenta-nos um objecto superior. A ele também agradecemos, pela oferta desta publicação. As imagens do vídeo são desta edição, as que acompanham o artigo não.

17 de abril de 2010

Re: O que é uma ilustração?

Nota inicial: este texto é muito longo, e se peço desculpas por esse facto, também penso que os leitores sabem que este é um espaço que, por vezes, pretende entrar num discurso mais alongado e ensaístico. O tema obriga a desdobrar a discussão, e mesmo assim não a esgota, o que é impossível.
A propósito da exposição Dandy, na galeria Dama Aflita, no Porto, mas também a Ilustrarte 09, em Lisboa, e integrado nas pesquisas associadas à minha qualidade de professor de algumas disciplinas afectas à ilustração em várias escolas, gostaria de intentar aqui um pequeno ensaio de apreciação geral dessa meta-área que é a da Ilustração. Para isso, começaria de uma forma relativamente circunscrita e simples, que é a da resposta.

A galeria Dama Aflita convidou Mário Moura para escrever um pequeno texto sobre o Dandy, essa figura provinda do século XIX, e da qual o crítico de design descobre as inflexões contemporâneas. Desse texto nasceram as ilustrações de 45 artistas (de variadas origens, técnicas e aproximações). E dessas respostas surgiu um novo texto de Mário Moura, que discorre sobre a natureza da ilustração. Nele, o autor diz que os resultados foram “alguns literais, outros inspirados, outros inesperados, outros irónicos, outros meramente banais”. Se bem que nos apercebemos que este texto não tem qualquer propósito programático mas sim o de uma anotação breve, e conhecendo o trabalho do professor e crítico de design, estamos seguros que noutras circunstâncias poderia desenvolver de outra forma, e com outro alcance, a sua perspectiva mais completa. Todavia, se bem que devemos deixar claro de novo que nos apercebemos que esse texto não deseja ser nem holístico nem fechado, consideremo-lo enquanto tal, pois só assim posso organizar a ideia de “resposta” que desejo fazer, lá está, não tanto em relação a Mário Moura, mas às questões que o texto dele suscita.
A questão a que gostaria mais de responder é a das palavras “banal” e “literal” na ilustração, as quais considero não existirem. De todo.
A própria questão “o que é uma ilustração?” parece querer depreender a possibilidade de uma (só) resposta. Isto é, a abordagem do problema escolhe o pronome indefinido (“uma”), criando-se a ideia de que todas as ilustrações participariam de uma qualquer natureza comum, ou de condições mínimas necessárias e suficientes idênticas para que ocorra uma ilustração. Mas essa é uma questão na verdade sem resposta definitiva, mas apenas um problema que desvendará, na sua procura, problemas consequentes, mas importantes de desdobrar. Tal como a pergunta “o que é a arte?” é algo ridícula de colocar, ainda mais é não o fazer, isto é, não dar os passos necessários à sua tentativa de resposta.
Não se pode esperar seriamente uma reificação do conceito de ilustração, pronta-a-aplicar independentemente do seu contexto, negligenciando totalmente as relações sincrónicas e diacrónicas com outras instâncias (às quais retornaremos), essas sim constituindo um eventual todo, concebível ainda que jamais aprisionável. Caso contrário, se partirmos do pressuposto que esse encerramento último é possível, incorreremos desde logo num discurso isolocionista (“a ilustração ocorre quando temos x”, “a ilustração é, sempre, y”), ou pior, prescritivo (“a ilustração deve ser x”).
A propósito da edição da versão ilustrada de Amadeo d’A Lenda de São Julião Hospitaleiro de Flaubert, havia dado conta de duas citações (dadas no texto de M. F. Molder nessa edição), uma do próprio Flaubert e a outra de Marina Tsvietáieva em torno da ideia da ilustração. Debatendo as imagens que Goncharova faz sobre os poemas de Churilin, e ainda que evite a palavra em si, a escritora russa explica que entende a ilustração como a revelação de um sentido original uma segunda vez numa outra linguagem, logo, revelando-o pela primeira vez. Há uma equiparação, especial, explicada, determinada, com a tradução, portanto, e utilizarei essa palavra adiante.
À partida, e no texto de Mário Moura essa ideia revela-se logo desde o início, a ilustração é considerada como uma reacção a algo que a antecede, as mais das vezes um texto verbal. A ilustração como uma imagem criada para acompanhar um texto. Ora, considerando a ilustração na óptica dessa “tradução” de Tsvietáieva, a transposição intersemiótica (de texto verbal a imagem) implicará de imediato duas consequências. Em primeiro lugar, a emergência de uma imagem concretizará objectivamente algo que, no campo linguístico primeiro, havia estado circunscrito – por um substantivo comum ou próprio, um adjectivo físico ou moral, uma descrição menos ou mais completa – numa categoria relativamente alargada, e não num espécime, um objecto, concreto. Em segundo, a decisão de trazer à tona da existência (visual) um não-dito do texto de partida. Algo que ele não previa ganha contornos e expressão.
Estamos, até ao momento, presos à ideia de “texto” enquanto um discurso verbal determinado (por isso o qualificámos), mas poderíamo-lo, ou deveríamo-lo estender para o compreender num sentido semiótico mais alargado sem perder essas consequências? Vejamo-lo, antes de regressar à impossibilidade da banalidade e literariedade na ilustração de um texto.
Dos vários campos da ilustração existentes pensemos nos da ilustração de moda e ilustração científica. Quer num caso quer no outro não temos ilustrações para acompanhar necessariamente um texto verbal. É claro que poderemos ver um texto explicativo em relação a uma peça de haute couture lado a lado com um desenho dessa mesma peça, mas o desenho em si não estará a responder a esse texto mas sim ao vestido original. O ilustrador David Downton é pago para fazer uma sessão ilustrativa como o seria um fotógrafo de moda, e no seu caso em particular com as mesmas condições de produção. O produto do seu trabalho são ilustrações cujo “texto” a que respondem é, por exemplo, um vestido da Christian Lacroix usado por Linda Evangelista, não o texto do escritor da V Magazine que eventualmente discute o mesmo vestido. No caso da ilustração científica, por exemplo de uma espécie animal, é bem possível que tenhamos algum texto, que pode ir da nomenclatura binomial de Lineu a uma escala que acompanha a imagem, mas também que pode ir à extensão de um artigo científico sobre a espécie representada. A imagem em si, todavia, estará a responder, a traduzir, a transpor intersemioticamente não esses mesmos textos complementares, mas a espécie em si representada iconicamente, enquanto imagem de síntese, de concatenação de elementos e traços de vários espécimes num só corpo visual agregador. Desta forma, as ilustrações destes dois campos em particular não são uma imagem que complementa de um modo ou outro um texto primário, mas antes formas de tradução de uma realidade anterior numa linguagem outra, dizendo a mesma coisa pela primeira vez. A ilustração científica pode transmitir dados relativos não apenas à morfologia da espécie (uma angiospérmica, um peixe), mas também à sua biologia e ecologia, um momento dinâmico e de interrelação, uma imagem que possa servir de modelo mental contra o qual compararemos os espécimes reais, ajudando-nos na sua identificação (que é desde logo interpretação). A ilustração de moda não apenas mostrará um objecto de três dimensões, mas mostrará a fluidez de um corte, a opção entre peças separadas ou integradas, revelará escolhas relativas a padrões e texturas, aspectos cromáticos e estilos, e, mais além, uma certa estação social, um estado histórico e cultural, um desejo.
Queremos, e sentimos mesmo a necessidade, se não a obrigação, de acrescentar uma palavra em relação à ilustração científica, suscitada pela assistência a uma apresentação do historiador da arte e filósofo Georges Didi-Huberman, cuja obra seguimos em várias ocasiões, e que esteve de passagem em Lisboa. É bem possível que nalguns círculos as ilustrações científicas, ou em termos gerais, as imagens associadas à ciência, ainda estejam presas à ideia de um eventual positivismo, levando assim à ideia de “objectividade”. Queremos com isto afirmar uma dupla objectividade, quer aquela que teria a ver com a (impossível) ausência da intervenção interpretativa do fazedor das imagens, que se prestaria tão-somente à observação, síntese e criação da imagem, quer aquela que aponta à construção de um objecto que se torna modelo. Mas a verdade é que mesmo essas imagens, mais do que operarem na esteira de um conceito previamente existente, criam esse mesmo conceito. Os estudos de Didi-Huberman sobre a obra fotográfica de Charcot (Invention de l’hystérie) apontam nesse sentido. Poderíamos, mais próximos da ilustração, recordar a história do desenvolvimento da teoria biológica da recapitulação (“a ontogenia recapitula a filogenia”) e do enorme contributo que Ernst Haeckel fez com o seu Generelle Morphologie der Organismen (“Morfologia geral dos organismos”, de 1866) e, mais tarde, com a imagem sobejamente conhecida do Anthropogenie (1874) em que se comparam embriões de um humano, uma salamandra, um peixe, um pinto, um bácoro, um coelho e um bezerro. O problema está no facto de que essas imagens acabam mais por se adaptar ao que Haeckel queria demonstrar do que de uma observação plena, levando à controvérsia que se sabe. Neste caso, é uma ideia pré-concebida que guia a mão do desenho, mas é este que funda a “objectividade” de uma teoria proposta. A anatomia poderia ser um ramo curioso de estudo para esta questão. Desde Vesali e o seu desejo por uma anatomia normativa à absoluta individuação possível através de imagens de ressonância magnética, a verdade é que o equilíbrio dessas imagens será sempre uma de selecção, acuidade e síntese, mas na qual a interpretação tem o seu papel. Como dirão os alunos de anatomia, quando se disseca um corpo há sempre surpresas em relação ao que está descrito nos livros.
A razão da presença dessa interpretação pode-se explicar por outros campos. Como queria Merlau-Ponty, não há percepção que não seja desde logo consciência. Colocada a questão de uma outra maneira, Mieke Bal e outros autores, na explanação de novas abordagens ao campo da produção humana, falam da visão como sendo algo mais aparentado com a interpretação do que com a percepção. Dessa forma, as imagens integram-se numa ideia de textualidade mais expandida, que dispensam os textos propriamente ditos (a matéria verbal) ou quaisquer tipos de analogias ou confluências (que levasse a comparações básicas, taxativas e inexplicadas entre os elementos da língua ou da literatura e os das imagens, falando-se de “gramática visual”, “predicados visuais”, etc., apesar de haver tentativas hercúleas e brilhantes de o fazer, como a do Groupe μ). A conclusão deste pensamento é que a visão, enquanto acto, é um acto de leitura. Ora as ilustrações, como um campo privilegiado da imagem, permite uma leitura privilegiada. E isso não ocorre apenas ao nível da ilustração de moda ou científica, em que o grau de iconicidade é mais ilustrativo do que diagramático, como no caso da infografia ou dos pictogramas.
Poderíamos ser levados a pensar, por exemplo, que os pictogramas dos lavabos “dos homens” seria uma das abordagens mais simples, e então mais “banais” e “literais” do texto de partida – a noção de “homem”. Mas ao considerarmos o pictograma dos lavabos “das mulheres”, emerge de imediato uma questão política de interesse central: a de que as mulheres são-no por diferenciação dos homens, talvez não apenas a nível do design dos pictogramas (apesar do programa democrático, universalista e expansivo de Neurath e Arntz). Isto é, aquela noção primeira de “homem” que deveria contemplar “humano” informa a de “mulher” como “homem de saias”. Não há, nunca, nem olho selvagem nem imagem inocente.
Logo, a questão de uma ilustração partir de uma representação icónica de algo que existe no mundo – uma sardinha, um vestido de Lacroix, pessoas – ou algo que é inventado – a ideia de um “dandy” – não é suficiente para diferenciar estratégias de representaçãoe muito menos de significação.
Existem sempre zonas de negociação, fronteiras, territórios heterogéneos, de partilha, de confusão, indeterminação, inscrição dupla ou múltipla, nas quais se disputarão práticas, linguagens, imaginários, visualidades, experiências e vozes, misturando-se sempre em graus diversos que levam, consequentemente, a relações diferenciadas de poder e privilégio. Temos que olhar toda e qualquer ilustração como estando nessa zona e medir os graus dessa negociação, atentamente.
Há ainda uma outra forma de abordarmos o problema, penso. É também no texto de Mário Moura, e nalguns dos comentários deixados ao seu post, que encontro material para o caminho a percorrer (e ainda discussões com alunos). Como muito bem aponta o meu homónimo, posicionamentos essencialistas de definir a ilustração jamais poderão funcionar. Sigamos o seu trajecto e exemplos sucessivos. 1. “Uma ilustração representa visualmente um texto”; mas uma versão cinematográfica de um romance fará o mesmo; e se apenas representa, poderia substituí-lo, como acontece naquelas instâncias em que “lemos as imagens” dos “clássicos” que todos conhecem “por alto” mas nunca leram?; e será essa a razão que as torna dispensáveis numa edição subsequente, como nos casos de Dickens com Cruikshank ou Phiz ou de Verne e seus colaboradores? 2. “Uma ilustração não é autónoma, está ligada a algo mais” [o “texto” no sentido semiótico]; o que puxaria para o seu território praticamente toda a História da Arte Ocidental, inclusive parte das vanguardas históricas; não implicará que o desconhecimento do “texto” invalida esse elo: conhecemos a Paixão de Cristo para reconhecer o ciclo de imagens na azulejaria das igrejas, mas acontecerá o mesmo ao olharmos a vida de Buda em torno dos templos na Ásia? 3. “A ilustração é para ser reproduzida em massa” [ou, com Benjamin, reproduzíveis mecânica/tecnicamente?; há uma diferença de perspectiva]; o que colocaria de fora mais de um milénio de imagens associadas a textos (em rolos de papiros e códices de pergaminho) e traz à baila o problema da reprodução incontável das imagens das “artes maiores”. Afinal, tenho a certeza que alguns dos leitores, tal como eu, conhecem uma parte significativa, talvez até substancial, da História da Arte Ocidental... sem nunca ter ido a Roma ou Paris ou Moscovo ver as obras que a compõem. Conhecemo-la através de reproduções técnicas em massa. 4. “A ilustração é feita por ilustradores”; desta forma abre-se um capítulo particular da teoria institucional da arte para este campo em particular, mas também aos paradoxos e problemas dessa mesma teoria, sendo um deles uma circularidade perigosa (aqui é preciso sublinhar que o estudo do estado social da ilustração é também importante, e Mário Moura havia já abordado este assunto, da informada maneira que se lhe reconhece, em O que se passa com a ilustração?).
Estes parâmetros, tomados individualmente (representação de texto, ligação a objecto externo, reprodução técnica de massa, instituição), não nos asseguram um caminho directo à ideia de ilustração. Mas a mera adição deles também ajuda em pouco, pois sempre ocorrerão excepções, fugas, ocultações activas e omissões passivas, qualquer desses casos perniciosos resultados. Penso que se tomarmos como exemplo o contraste paradigmático entre uma obra de pintura num livro de história de arte e uma ilustração num livro de ficção para crianças nos poderá guiar um pouco, não tanto a uma conclusão, mas a uma direcção mais complexa, mais integrada e sobretudo possível.
Tomemos A Dama do Arminho, de Leonardo Da Vinci, como o exemplo da pintura, e um desenho colorido de André Letria para História de um segredo como o da ilustração infantil. Não nos interessam aqui tanto as histórias físicas (e sociais, etc.) de cada objecto: em que cidade foram desenhadas e pintadas, montadas e expostas, quem as manipulou ou comprou, quem e como as vê, etc. Interessa-nos seguir uma estrutura básica e redutora, que sirva de ponto de comparação. Leonardo preparou um painel de madeira de determinada maneira, dispôs as tintas de óleo de acordo com um plano de composição e terminou a sua pintura, que teve a sua história própria, até chegar ao seu estado actual, em exposição num museu da Cracóvia. Em várias ocasiões, no processo da feitura de livros de história da arte, sobretudo os mais recentes, um fotógrafo teve a oportunidade de preparar uma fotografia com as condições mais propícias à captura da pintura. Essa fotografia seria depois transformada de acordo com um processo qualquer, a digitalização e compactação, para que pudesse ser colocada no interior de um programa de paginação do livro. O ficheiro dessa paginação completa é enviado para o processo de impressão, o qual produzirá o livro e, nele, A Dama do Arminho. Letria, de uma maneira gestual e mental em nada diversa da de Leonardo (escusamo-nos das patetices de entrarmos em psicologias de Domingo sobre “génios” ou arrogâncias vazias das especificidades tecnicistas ou materialistas), dispôs as suas matérias gráficas sobre papel. Esse desenho colorido, finalizado, foi alvo de um processo de captação fotográfico, eventualmente de conversão digital a partir de uma fotografia analógica ou através da sua digitalização imediata. O ficheiro da imagem digital desse desenho é também composta na página, esse ficheiro no processo de impressão, e cá temos o seu livro.
Em ambos os casos atravessámos as fases de criação, captura, digitalização, paginação, impressão. Tecnicamente não houve qualquer diferença. As relações entre o texto e a imagem existem em ambos os casos: leio uma interpretação de Gombrich sobre o quadro de Leonardo, e encontro na pintura, ao lado no mesmo livro, o ancoramento necessário para a entender; leio o texto de Cotrim e encontro nas imagens de Letria uma decisão da história. Dizer que Leonardo criou para fazer um quadro e não contemplava a sua reprodução futura, e que Letria sabia que estava a criar o desenho para surgir num livro não ajuda, pois o que nos importa decidir é a razão pela qual na nossa percepção do quadro de Leonardo dizemos “reprodução” e no caso de Letria dizemos “ilustração” (mostrando que a percepção é na verdade um acto interpretativo da visão, como se aventou atrás). E podemos complicar o assunto, apontando para a presença dos desenhos de Letria na Ilustrarte, por um lado, ou um livro como As Botas do Sargento, um conto de Vasco Graça Moura baseado nas pinturas de Paula Rego, também presentes no livro.
Antes de avançarmos, é preciso também indicar que o apelo às condições de produção, dizendo que num caso o escritor Cotrim escreveu primeiro o que o ilustrador Letria “traduziu” depois, pouco importa, pois haverá (há) exemplos de livros ilustrados que foram criados “ao contrário”, e Paula Rego seguramente não levantou entraves, podendo-o, à utilização das suas imagens enquanto ilustração do conto de Graça Moura que haviam despertado. Analisaremos antes as condições de possibilidade, e as razões profundas dessa diferenciação.
A diferença é, portanto, ontológica. E não de qualquer outro quadrante. Quando vejo o quadro de Leonardo no museu da Polónia, tenho a oportunidade magnífica de estudar toda uma série de características, sobretudo físicas, que não estão ao meu alcance na sua reprodução no livro, por melhor que seja, e por mais brilhante que seja o texto interpretativo. Mas o mesmo sucede quando observo um desenho original de André Letria exposto, podendo explorar de um modo raro a sua plasticidade suave, as texturas subtis, as relações de dimensão entre os elementos, etc. Se me referisse a Manuela Bacelar, poderia explorar a diversidade de caos feliz das suas composições. Se me referisse a Luís Henriques, poderia explorar o pormenor das malhas intricadas e irregulares dos seus traços. Poderei, eventualmente, sentir o mesmo tipo de transporte estético e emocional. Mas intelectualmente sei que ao olhar para o quadro de Leonardo estou a olhar um “quadro” e algo “original” (com maior inclinação para o sentido de “único”) e que no livro se encontra uma “reprodução”. Ao olhar o desenho de Letria, vejo um “desenho” e a “arte original” (inclinando-se antes para “aquilo que dá origem a outra coisa”) e que no livro vejo a “ilustração” (propriamente dita). Ela ganha toda a sua expressividade ontológica no seu acto final, é esse o seu fito. Quando olho as pinturas de Paula Rego no seu museu, vejo-as a elas, inclusive aquelas que deram origem ao conto de Graça Moura, mas quando as vejo no livro da Quetzal enquanto leio o texto, leio-as transformadas em “ilustração”.
Que sucederá, porém, com as reproduções da arte original de Letria no catálogo da Ilustrarte? Vejo uma ilustração? Vejo uma reprodução de um desenho?
Vejamos de outro prisma... Imaginemos que numa rua que caminho me deparo com uma folha solta de um jornal, de uma revista ou de um livro. A folha está rasgada e apenas me deparo com uma imagem e um troço quase irreconhecível de um texto. O desenho parece ser de André Letria. Não tenho acesso ao texto, mas apenas àqueles indícios em torno do destroço material que tenho nas mãos, e que me levam a querer completar a ideia de jornal, revista, livro. Esses indícios levam-me a pensar nessa imagem como sendo de um livro ilustrado. Então penso que seja uma “ilustração”. Poderão obstar ter utilizado um exemplo que reconheceria pelo estilo (Letria). Mas poder-se-iam procurar outros exemplos e aproximar-mo-nos da mesma posição. Não conheço a história de Buda e reconheço que em torno daquele templo se mostram episódios da sua vida histórica. Não reconheço esta imagem mas percebo que deve ser uma caricatura política deste país. Nunca vi este estilo mas parece-me ser uma ilustração de moda. Não reconheço este insecto mas estou quase seguro que se trata de uma ilustração de um guia entomológico. Poderão obstar de novo, dizendo que esta acumulação sucessiva de ignorâncias não ajuda em nada a tentarmos definir ilustração. É possível que tenham razão.
A palavra “ilustração” tem de ser usada de um modo descritivo, que aponte para a ocorrência da relação ontológica indicada, e não enquanto valorativa (usualmente ajudando com adjectivos e advérbios: “isto são meras ilustrações”, “esta capa é demasiadamente ilustrativa”). E essa relação faz-nos regressar a um dos parâmetros “essencialistas” apontados acima, a saber, o segundo – “Uma ilustração não é autónoma, está ligada a algo mais”. Só que agora essa ligação é mais explícita, ou assim o espero.
É que a ilustração, no seio dessa relação, é a um só tempo opaca e transparente. Transparente porque, por um lado, retorna ao texto, está nele ancorado, faz-nos olhar para si para que olhemos o texto. Pense-se no seguinte. Quando se lê um livro ilustrado infantil, é a imagem aquilo que usualmente se lê primeiro (a menos que se faça um exercício obstruso tapando-a, colocando os olhos por sobre as letras, à amblíope, ou algo assim; e as crianças mais novas apenas “lêem” as imagens escutando o texto a ser lido). O mesmo ocorre naquelas edições ilustradas do século XIX, ou as que as imitam e seguem (como a edição d’Os Cadernos de Pickwick, da Tinta-da-China, que retoma as ilustrações de Phiz). O mesmo ocorre em alguns dos projectos de Tiago Manuel. Etc. Mesmo imaginando-se que são as imagens que complementam (secundam) o texto (primeiro), são elas que se lêem em primeiro lugar, obrigando-nos a procurar no texto as razões da sua existência, remetendo-nos àquela questão que Flaubert havia colocado e que deve ser o moto de toda a ilustração: “como é que ele tirou isto daquilo?”
Por outro lado, porém, elas são opacas. Ao olhá-las, olhamo-las a elas mesmo, às suas características próprias, que em relação ao texto concretizam e interpretam. Agregando questões de expressão, de estilo, remetem antes à ordem dos porquês das suas opções interpretativas. De certa forma, “porque é que ele tirou isto daquilo?”
Em vez de considerarmos a ilustração acompanhando um texto como “decoração”, “embelezamento”, e tendo em consideração que perceptivamente são lidas em primeiro lugar, deveríamos antes vê-las como plataformas de redescoberta do texto, filtros que obrigam, mesmo à primeira leitura, a uma segunda leitura, imediata, ou a uma leitura feita a dois níveis, se preferirem. Que tem duas direcções, da ilustração ao texto e do texto à ilustração.
No texto que escrevi sobre o último livro de Robert Crumb, o seu Génesis, e que será colocado no site SuccoAcido em breve, discuto precisamente a questão de que uma abordagem “literal” da ilustração de um texto é impossível. Crumb afirma “não acrescentar” nada ao texto bíblico, mas parece esquecer-se de que o está, não a copiar verbalmente, mas a traduzir para uma outra linguagem, para um outro sistema semiótico. As alterações não são somente de superfície, são profundas, alterando a atitude expectável de uma personagem, escolhendo uma posição, decidindo por uma das interpretações possíveis. Faço também um breve contraste ou comparação com uma das gravuras planeadas por Gustave Doré para a Bíblia (um episódio do Dilúvio), cuja imagem tem toda uma série de elementos ausentes do texto do Génesis, e que actuam como comentário. Este exercício poderia continuar-se ou experimentar-se em muitas outras instâncias, revelando os seus frutos.
Eu acredito que a ilustração é ontologicamente sempre uma resposta em relação a algo que lhe é externo mas que se actualiza nela mesma, ao contrário de outras disciplinas das artes visuais, as quais também respondem a algo anterior e externo (é essa a respiração da cultura, de resto) mas procuram uma certa autonomia imediata, fruto de uma posição moderna em relação às artes (pois historicamente estiveram subsumidas a outras funções e papéis, apenas na modernidade surgindo as noções de expressão ou de autonomia, a própria noção de beleza é multímoda, etc.). Se o referente nas outras artes é um elo que se pode soltar, no caso da ilustração ele é elemento intrínseco na sua leitura global, é próprio do seu significante. Isto é, é preciso ter em questão que a ilustração faz sempre uma tradução de uma outra coisa mostrando-a pela primeira vez e, por isso, não consegue jamais ser banal nem literal no sentido corrente. Se se quiserem empregar essas palavras num sentido equiparável ou irmanável a outros termos como “feia”, “pindérica”, ou seja, numa apreciação impressionista, muito bem. Mas não deverá ser esse o nosso propósito enquanto leitores de segundo grau, professores, críticos, praticantes.
A natureza de uma exposição de ilustração também levanta algumas questões pertinentes. Tomemos de novo os exemplos da Dandy e da Ilustrarte. No primeiro caso temos um conjunto heteróclito de imagens criadas por diversos autores mas todos respondendo ao mesmo desafio e texto de partida. O resultado final é aquele que se desejava colocar nas paredes da galeria. Existe um catálogo, mas ele existe-o enquanto tal, ou seja, um repositório para memória futura daquela acção, acompanhado com uma mão-cheia de informações. Não é, de forma alguma, um “texto primário” (a menos que a publicação tivesse sido pensada de forma a obter um grau de autonomia em relação à exposição, como tentámos fazer no caso da Divide et Impera). O “texto primário” é a colecção daquelas imagens que o público vê, associando-as ao texto que lhes deu origem. Mesmo que o não leiam, terão sempre acesso permanente à ideia fantasmática desse texto, faz-se um exercício de associações permanente. No segundo caso, temos uma mostra da arte original que havia sido criada para vários projectos publicados (ou inéditos, o que depreende o seu desejo de vir a ser editado, é esse o seu fito). Essa ideia fantasmática também ocorre – estou a olhar uma imagem que sei pertencer a um livro sobre x, mesmo que não o possa ler e inteirar-me dele – nesta mostra, mas não acontece a percepção do “texto primário acabado”. Sei que há mais para além disso. Posso olhar as imagens e apreciá-las enquanto obras de arte, fruto do virtuosismo técnico, da beleza intrínseca, do seu valor material, tal como no caso das da Dama Aflita, mas enquanto aí eu via o seu finalíssimo corpo, aqui sei que esse corpo está adiado para o livro. Mário Moura, no texto que tem estado na nossa mente, pergunta e responde o seguinte: “O que se perde ao colocar uma ilustração numa parede ou reproduzindo-a num catálogo? Na maioria dos casos, perde-se muito pouco”. Apesar de não compreendermos se a resposta se refere apenas um dos factores da pergunta (a reprodução), a questão é que mesmo que se perca algo, mesmo que haja uma péssima edição gráfica, é esse objecto que me dá o texto final, a vida real da ilustração.
Apesar de nos alongarmos demais para um texto de blog, regressemos à questão das considerações diacrónicas e sincrónicas da ilustração, não diferentemente do que ocorre em qualquer outro acto humano. Subscrevo a noção da definição histórica das artes (incluindo a da ilustração ou a da banda desenhada, que mais nos importam) de Jerrold Levinson e as “correcções” narrativas de Noël Carroll. Em suma, este posicionamento leva-nos não a identificarmos uma ilustração por uma qualquer essência – que em rigor não se diferenciaria de outras disciplinas artísticas por este ou aquele aspecto – mas porque a associaremos a uma qualquer narrativa que recorre ao que sabemos do estado diacrónico, isto é, histórico, da ilustração (“antes era assim, depois incluiu-se esta técnica, depois ainda houve uma influência assim”), tal como sincrónico, quer no campo da ilustração (“esta ilustração, apesar de infantil, recorre a técnicas da ilustração científica”, “este autor recorda outro”) quer a outros campos (“tal como no cinema, ocorre aqui um establishing shot”, “esta técnica de moldagem bebe de experiências do cinema de animação”).
São todos esses elementos que concorrem na nossa apreciação de uma ilustração. Parta ela de um vestido de Balenciaga, da ideia enciclopédica de um carapau, de um conto tradicional, de um episódio bíblico, ou de um texto intelectual para uma exposição, a imagem “traduz” esses textos primeiros sempre de uma maneira transformativa, recorrendo a instrumentos de expressão, das personagens ou do próprio material (Eric Carle, Hanoch Piven e Mário Cameira não apenas fazem os seus “bonecos” como querem que tenhamos atenção aos materiais empregues), relembrando um percurso icónico-verbal histórico (E. Gorey remete à gravura vitoriana, David Downton é herdeiro de René Grau, Carrilho recorda a plasticidade do trabalho de Al Hirschfeld, Piven reformata práticas de Arcimboldo, Tiago Manuel ecoa o trabalho heteronímico de Pessoa), optando por uma qualquer regra de transformação icónica que tanto pode ser barroca, engalanada, pormenorizada e cheia (Rui Paes, James Jean, Carla Pott, João Maio Pinto, Daniel Silvestre da Silva) como minimalista, estilizada, metonímica (Dick Bruna, João Fazenda, Gémeo Luís, Daniel Lima).
À pergunta “o que é uma ilustração?” respondemos as mais das vezes sem hesitação. Isso não significa que não estejamos a empregar toda uma série de parâmetros e conscientes formas de interpretar aquilo que se vê. Vemos uma relação ontológica entre a imagem e aquilo com que se enleia, uma associação a uma história particular e a uma situação ampla. A ilustração é um modo de tradução, de transposição, de re-logicização. Esta não é, de forma alguma, uma resposta completa. Mas para lá caminhamos.
Nota final: são muitas as pessoas a quem devemos agradecer, por darem a conhecer novos mundos, direcções, livros. Fiquem pelo menos os nomes de Mário Moura, Carla Pott, Pedro Salgado, Daniel Silvestre da Silva, os organizadores da Dama Aflita e da Ilustrarte, os alunos do Mestrado na ESAP-Guimarães.