27 de fevereiro de 2010

Der Struwwelpeter. Atak e Fil (Kein & Aber)

Em 1845, o médico alemão Heinrich Hoffmann publicou aquele que viria a ser um dos primeiros clássicos dos Bilderbuch infantis da história desse mesmo campo, Struwwelpeter (o título original era maior, mais descritivo e nada interessante). Não sendo um artista, os desenhos de Hoffman têm porém uma característica de crueza e simplicidade que viriam a tornar-se a bitola de muita da produção da literatura desenhada infantil dos tempos a vir. A sua estruturação em pequenos nódulos de acção seriam ainda um contributo insofismável para a banda desenhada moderna, sobretudo pelo papel que tiveram sobre aquele que viria a ser considerado a figura patrística da banda desenhada alemã, Wilhelm Busch, autor de Max und Moritz. Além do mais, aliados às suas curtas dez histórias em verso, portadoras de uma indubitável moral que podermos classificar como cruel, teutónica, marcial, vindicativa, até mesmo de contornos de lei retributiva, a força que fariam passar era a de uma musculada matéria, para sempre indelével na cabeça dos seus pequenos (e grandes) leitores. As histórias passam pelo malvado Friederich, que maltrata os animais e será finalmente mordido por um cão; por um trio de miúdos a gozar com a negritude de um rapaz africado, que acabam mergulhados em tinta preta pelo São Nicolau; por Kaspar, que não quer comer a sopa, e acaba por morrer de subnutrição; e pelo mais famoso e violento dos contos, de um pequeno rapaz que não pára de chuchar os polegares e descobre que as ameaças da mãe são reais quando finalmente o Alfaiate das tesouras imensas aparece e lhe decepa os dedos, cuspindo sangue e dor por todo o lado... No que diz respeito aos princípios ditos pedagógicos (mas também debilmente moralistas, comerciais, paninhos quentes, açucarados) que governam o mundo editorial da literatura infanto-juvenil, aquém- e além-Guadiana, as mais das vezes pautados por uma perniciosa interpretação do princípio de Cícero de que a oratória deveria levar “ad docendum, ad delectandum, ad permovendum”, em que é o primeiro factor aquele que é estúpida e obviamente sublinhado em detrimento dos outros elementos que permitem uma aproximação mais directa, o livro de Hoffman é um proscrito, naturalmente. É violento, cruel demais, senão mesmo horrendo. Mas as crianças são maiores monstros do que se pensa, e são criaturas capazes de entender de forma bem diferente a crueldade que se lhes reserva. (Mais)

Dodgem Logic. AAVV (Knockabout)

Alan Moore, para além da sua famosa carreira como refundador de todo um modo de escrever e produzir banda desenhada no seio das indústrias do mainstream britânico e norte-americano desde os anos 1980, sempre teve um dedo a apontar ou uma palavra a dizer sobre os mais variados temas, nunca se deixando seduzir pelas possibilidades que a fama ou o sucesso financeiro pudessem acarretar. Para além do conhecido fato branco, a outra característica de Alan Moore face ao seu sucesso foi a contínua desiludida abnegação dos que lhe que queriam oferecer mais e mais, mas por um preço que sempre se recusou a pagar. Seria essa característica que o colocaria em rota de colisão com a casa que o albergou durante anos (a DC Comics), que o faria afastar-se de todas as adaptações conematográficas dos seus trabalhos (e com razão), negar mesmo receber as royalties a que teria direito (passando-as para os seus colaboradores), e o faria entregar-se a projectos sempre paralelos, não tanto do mainstream mas sem entrarem no mundo verdadeiramente underground: algo como um “midstream”. Quase todos os títulos da ABC vogam nesse contínuo território negociado entre a cultura popular (inclusive a literatura, claro) e a sua reinvenção místico-intelectual (através da sua noção de Ideaspace), e outros trabalhos, como o projecto anti-homofóbico The Mirror of Love ou o pró-pornográfico The Lost Girls, procuravam expandir novos modos de reinventar as liberdades da percepção, e a expansão da sua criação. (Mais) 

Popman Mix. Te-te (Kultura Gniew)

Popman é uma personagem que vive num mundo realista, em quase nada diverso do nosso. No entanto, ele mesmo é composto de uma pilha de jornais, amassados sob forma humana, de rosto estilizado e olhos quadrados. Como o entender? Há duas hipóteses, contraditórias. Podemo-lo ver de um ponto de vista negativo, entendo esta personagem como o que resta de um homem da sociedade ocidental mega-mediatizada, reduzido a uma frágil estrutura de sound bites, parangonas, vídeos de dez minutos no youtube, troços, não, destroços de informação, referências pop misturadas num caldo a-histórico e a-referencial, uma capacidade mitigada de reagir e viver no mundo real das pessoas que se cruzam com seres humanos completos todos os dias, vendo-as apenas como esterótipos de uma ou outra categoria, procurando formas de arrumar todas as experiências da vida a top 10s e assumindo que toda as circunstâncias da vida são eventualmente concursáveis. Há também um ponto de vista positivo, mas que atravessa os mesmíssimos factores, mas substituir-se-ia a ideia de “redução” pela de “sublimação”. (Mais)

22 de fevereiro de 2010

Greetings from Cartoonia. AAVV (Stripburger/Forum Ljubljana).

A metáfora do território, bastas vezes empregue por nós nestes textos, não passa disso, evidentemente, uma metáfora. Mas uma metáfora serve para criar um argumento de uma forma mais ou menos clara, em termos relativamente simples, um símile que permite aos interlocutores estabelecerem um ponto de contacto e guiarem-se (um conduzindo, o outro sendo conduzido) pela exposição desses mesmos argumentos. As metáforas são específicas a cada cultura, claro está, fazem mesmo parte dos mecanismos que nos permitem perceber o mundo, e é quase impossível erradicar o uso metafórico da linguagem humana, com o risco de a tornar verdadeiramente ininteligível. Para além disso, as metáforas têm uma forma de lançar ramificações (eis outra metáfora) que qualificam e inflexionam a metáfora inicial, ou seja “uma forma como as implicações metafóricas podem caracterizar um sistema coerente de conceitos metafóricos e um sistema coerente correspondente de expressões metafóricas desses conceitos” (cf. Lakoff e Johnson, Metaphors we live by). A metáfora do “mapa”, da “cartografia”, do “território”, permite-nos depois entabular uma argumentação que envolverá a “viagem”, a “estada”, o “transporte” (significado etimológico de metáfora), e até mesmo o “sentirmo-nos perdidos” ou o “souvenir”, enquanto objecto resgatado dessa viagem e desse território. (Mais)

Repulsa. Alice Geirinhas (Ao Norte)

Uma das dimensões mais famosas e discutidas do filme de Polanski (Repulsa, 1965), que Alice Geirinhas retransforma em banda desenhada, é a dimensão do som amplificado. Numa das cenas mais intensas e famosas, a da entrada do violador imaginário no quarto de Carol, há mesmo ausência de música no momento imediatamente antes do mais dramático evento representado (duplamente fictivo). Quase toda a produção cinematográfica, seja ela de ficção ou documental, alternativo ou de estúdio, entrega-se sempre a estratégias relativamente expectáveis de gestão, ou melhor, de manipulação das emoções e das expectativas do espectador através da música. Haverá casos de mestria musical no cinema, que nascem de relações de intimidade criativa (Eisenstein e Prokovief, Hitchcok e Herrman, em menor grau e com destinos diferentes, Kieslowski e Preisner, Greenaway e Nyman), mas gerir essa tensão em silêncio musical, apostando no mergulho total nos sons “naturais” dos ambientes, que se tornam sinal opressivo dessa realidade, não é algo de comum no cinema “normal”. Curiosamente, é na esfera do cinema de animação que encontraremos um emprego dos sons naturais, dos objectos, na amplificação dos pequenos ruídos, diegéticos ou não, que encontraremos uma forma de moldar as sensações das personagens ou do próprio filme (penso sobretudo em Svankmajer ou Schwizgebel). (Mais) 

Ball Peen Hammer. Adam Rapp e George O’Connor (:01 Second)

As generalizações são sempre abusivas, uma vez que querem colocar todo um conjunto de referências, de pessoas, de textos, de exemplos, num único denominador comum, apagando todas as outras características que diferenciariam esses mesmos exemplos. No entanto, poderemos até certo ponto aceitar que essas mesmas generalizações podem servir de base a uma ideia de irmandade, de colação desses exemplos, tendando procurar estabelecer princípios interpretativos em comum, os quais poderão identificar tendências, talvez, ou pelo menos um tentativo grupo.

Este livro encaixa-se num quadro alargado de toda aquela ficção contemporânea norte-americana, um verdadeiro género, a que se dá o nome de “catástrofe”. É no cinema que esse género se torna mais visível, naturalmente, não só pelas possibilidades geradas pelas novas tecnologias da imagem, como pelas novas estruturas de financiamento e ainda a capitalização dos medos, tensões e o chamado “espírito do tempo” (e, claro está, uma tremenda crise da qualidade da escrita cinematográfica, endémica à mais recente Hollywood). No entanto, esses medos não são apenas explorados pela cultura popular, como se depreende do romance A Estrada, de Cormac McCarthy, o qual também proporciona um enredo pós-apocalíptico de uma América que regride à mais básica das sobrevivências, sem que se apresente razões da catástrofe ou, matéria que redimensione o papel das personagens isoladas nessa desolação. O problema desse género, à partida, é político. Por um lado, como se disse, capitaliza um medo, mas um medo provinciano, sobretudo daquelas sociedades habituadas há décadas a um determinado estado de conforto que é o seu, independentemente de qual o seu preço (para os outros, claro). Por outro lado, porque exploram, de modo medíocre e melodramático, a baixeza de que a humanidade é capaz, para depois mostrar o estado de excepção dos seus heróis (aspecto de que o curto romance de McCarthy não escapa). Finalmente, porque se tornam um terrível ecrã, que aponta a uma “hipótese”, a uma “eventualidade”, impedindo-nos de ver o quão reais essas situações são em locais da terra, aqui e agora (do Uganda à Coreia do Norte, da indústria de peixe na Tanzânia às lixeiras de Buenos Aires e as crianças-escravas-trabalhadoras-prostitutas um pouco por todo o mundo). (Mais)

Hamlet 1977. H. R. Vaughn e François Ravard (KSTR)


Sempre que nos deparamos com uma adaptação, isto é, a utilização de uma série de elementos provindos de um objecto ou uma área e o seu reemprego noutro objecto ou noutra área, emergem questões conexas, ou especificadoras, como os conceitos da transmediatização, transescrita, transemiotização, etc. Todos estes conceitos foram já abordados por literatura especializada, desde o volume Transécriture, dos colóquios de Cérisy, aos inúmeros artigos de estudos de cinema, literatura comparada e alguns contributos na área dos estudos da banda desenhada. Uma das formas que poderemos entender essa transposição é a existência (abstracta, até mesmo fictícia) de uma espécie de “matéria narrativa”, informe, que pré-existe à sua substanciação através de uma qualquer forma de expressão, um meio, através do qual se inscreverá finalmente no mundo, passado a existir como romance, filme, peça de teatro, banda desenhada, etc., cada qual com os seus princípios organizadores, especificidades de produção e circunstancialização, e até mesmo a sua própria “inércia”, para citar Philippe Marion. De certa forma, é quase como o que os formalistas russos chamaram de “fábula” (que nada tem a ver com o seu sentido de “história moral com animais antropomorfizados”, mas tão-somente com esse rol de acontecimentos que têm lugar no universo diegético da história contada), existindo independentemente de qualquer forma de a expressar. Estas divisões e dicotomias levantam problemas complicados, mas aproveitando um exemplo de Marion e André Gaudreault (de um artigo escrito em conjunto), e providenciando um outro, procuraremos demonstrar como é que essa fabula pode existir independentemente da sua concretização mediática. O primeiro exemplo é o do Capuchinho Vermelho, cuja menção é suficiente para despertar na mente de todos os leitores uma série de elementos que compõem essa fábula, elementos que não podem ser partilhados entre nós (salve a telepatia ou a união mística), a menos que os formemos (deformemos, informemos) através de um qualquer meio – desenhos, linguagem, gestos, sons. O segundo exemplo diz respeito, algo já discutido anteriormente, àquelas personagens que ganharam como que uma vida autónoma, que conseguem viver vidas paralelas às da obra que as consolidou, elaborando nas mentes dos seus leitores-espectadores-fãs novas aventuras e cruzamentos. Nessas personagens encontraremos Dom Quixote, Robison Crusoe, Sherlock Holmes, o Conde Drácula, e, porque não?, Hamlet. Pelo menos as cenas mais famosas (com o crânio de Yorick, o monólogo, tantas vezes amalgamados numa só cena no imaginário corrente) flutuam nesse imaginário independente de meios. (Mais)

Saudade. Um conto para sete dias. Claudio Hochman et al. (Teatro Aveirense)

Esta não será uma leitura crítica do livro, mas apenas uma pequena chamada de atenção à existência deste objecto. Este é um projecto do Teatro Aveirense que publica um pequeno conto do dramaturgo argentino Claudio Hochman, que vive em Portugal há alguns anos. O conto em si voga em torno da dita impossibilidade de traduzir com correcção e, o mais importante, de a viver, a palavra portuguesa "saudade". Apesar de, a título pessoal, discordar dessa visão, e temer por vezes que essa óptica linguístico-nacionalista revele antes uma falta de entendimento dos outros, a ignorância da existência de, noutros povos, palavras-sentimentos julgadas impossíveis de partilhar, e tudo poder desembocar numa espécie de orgulho vazio, a verdade é que ela, e outras palavras, se prestam a exercícios poéticos interessantes. Desde que não caiam em essencialismos nacionais, poderá abrir espaço a projectos de pensamento criativos. (Mais) 

15 de fevereiro de 2010

Ilustração Portuguesa I, 1910-1940. Theresa Lobo (IADE)

Este é um livro, ou mesmo um projecto, ambicioso, bem-vindo e com boas intenções. A área da história, apreciação e crítica da ilustração em Portugal está ainda, e em grande medida, por fazer. Existem já alguns bons gestos, se não mesmo cabais, na apreciação de artistas a título individual (com catálogos, biografias, ainda que mais trabalhos expositivos do que críticos), outros ainda dedicados a áreas específicas dessa história – por exemplo, a gravura pombalina, certos usos na publicidade, a caricatura de imprensa –, e outros ainda pequenos mas fulcrais contributos no entendimento do que faz a história recente desta área no nosso país (catálogos de exposições, volumes antológicos, outros sobre artistas em particular). O gesto de Theresa Lobo não é feito, portanto, num vazio total. Não obstante, a investigadora prevê uma atitude diferente, que é a da síntese histórica, a do balanço, a da consideração dessa mesma área como um todo, mais ou menos concebido e conhecido. Porém, tendo em conta que o processo de diástole ainda não está completo, o de sístole pode ressentir-se dessa incompletude. Ainda assim, como disse, é bem-vinda a tentativa de procurar estabelecer princípios de síntese e balanço dessa mesma história.
A autora tem dedicado os últimos 20 anos da sua vida ao estudo, levantamento de fontes, estudo comparativo, compulsão das publicações, de modo a aceder a um panorama alargado da ilustração, inclusive à escala internacional e, sobretudo, numa sua integração no panorama da História da Arte. Apesar de ter publicado outros estudos anteriores a este, ou ter dado provas deles, este é, discutivelmente, o primeiro contributo que se pretende dirigido a um público mais alargado, e que até possa, penso, servir de subsídio a estudos que o continuem e especifiquem ou que explorem alguns dos caminhos por si desbravados. Uma das suas grandes promessas seria a integração da tradição portuguesa num panorama mais alargado, sobretudo europeu, procurando tornar claro os diálogos existentes desse espectro artístico numa escala maior. A sua edição pelo IADE associa-se ainda a uma dimensão pedagógica, quer da própria investigadora, professora da história da ilustração, quer da própria instituição que a acolhe.
No entanto, o projecto está repleto de escolhos que minam a sua chegada a bom porto. Esses escolhos, como veremos, dizem respeito à integração prometida, à falta de clareza dos seus propósitos e programa, e a aspectos relativos às imagens utilizadas e à redacção.
A autora tem um domínio irrefutável da sua área de estudo, não só no que diz respeito aos trabalhos particulares da bateria de autores sobre o qual o estudo incide, mas igualmente pela leitura exaustiva das publicações que indica, o contexto social e cultural de cada uma, as metástases que se lançam a outras áreas da sociedade de então, e até mesmo a pequenos pormenores que cartografam estas épocas, entre os anos 10 e 40 do século passado. O problema está em que este saber não encontra a forma feliz de transitar por este livro, e acaba por se espraiar numa intenção, mas não num cumprimento. Uma primeira ordem de problemas está no facto de em nenhum momento esclarecer o seu programa, apontando direcções que se pudessem explorar mais tarde e cuja ausência não atenuasse o que é, de facto, apresentado. Qual a razão de, apesar do título parecer apontar à ilustração em termos gerais, haver um afunilamento exclusivo aos “magazines” (na nomenclatura empregue) das décadas apontadas, e nesse foco a um grupo relativamente diminuto e judicioso? Qual a razão de se falar atempadamente do ABCzinho (por óbvia associação ao ABC), mas deixar de fora todas as outras revistas de banda desenhada da época? E porquê focar a amostragem de imagens quase exclusivamente a capas, por um lado, e, por outro, a autores já reconhecidos (Carlos Botelho, Bernardo Marques, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, António Soares), em vez de abrir uma brecha de novos conhecimentos sobre um material mais diverso, até mais obscuro?
Um problema de segunda ordem é a falta de explicitação de alguns dos conceitos abordados. Talvez não seja um abuso esperar que se apresentasse, por exemplo, uma ideia clara do que poderia constituir a ilustração, enquanto conceito operativo nesta investigação, que explicasse as escolhas, o afunilamento do território, as opções. A identificação dos campos de ilustração existentes ou em permanente discussão, isto é, um entrosamento com autores que discutem estes conceitos, seria uma outra vertente expectável (com Michel Melot, Alan Male, outros). Mas isso não é sequer sondado. O que se desdobrará em sucessivos questionamentos possíveis, ao longo que nos cruzamos com o que parecem ser conceitos não explícitos. Por exemplo, que diferença existe entre “sátira”, “ironia” e “galhofa”? Em que medida a fotografia “reproduz o real” de um modo distinto de uma ilustração? Tratar-se-á de uma diferença técnica, de traço, de individualismo (Ph. Marion falaria de “graphiation”) ou de ontologia? Há ou não uma diferença entre ilustração e design? (às vezes, parecemos estar a falar de ambos os campos). Que diferença existe entre uma ilustração “gráfica” e uma outra “temática”? Claro que entendemos a disposição geral destas ideias, mas uma ideia não tem jamais um carácter geral, e uma discussão desta natureza abria espaço a uma escavação mais nítida e segura. Há como que um fantasma de impressionismo nesta abordagem.
A linguagem é por vezes isso mesmo, impressionista, o que por si só não tem nada de grave, e é mesmo uma forma de desencadear toda uma corrente de associações, de conceitos conexos, de direcções que se mostrem esclarecedoras. Só que são impressões dadas de fugida e deixadas por explorar, criando um espaço de mais dúvidas quanto à sua pertinência do que de um certeiro entendimento do artista, do movimento, da publicação. Por exemplo, na página 66, lemos o seguinte, sobre Rudolfo da Cunha Reis: “Rudolfo [sem mais, depois de uma prolongada ausência do nome] apresentava qualidades gráficas inegáveis, especialmente tendo em atenção a pouca idade com que as realizou. Existia uma certa imaturidade em alguns desenhos, mas também surgia uma certa ousadia no tratamento dos pormenores, como por exemplo na estilização das letras que introduziu nos principais parágrafos das crónicas de Fernando Pamplona (...)”. A fonte das imagens é apresentada em rodapé, há que procurar para entender; mas que idade tinha Rudolfo quando as realizou?; em que se consubstancia essa imaturidade e essa ousadia?
Alguns dos nomes dos artistas são citados num qualquer contexto mas sem que se faça grande introdução ou descrição, partindo-se do pressuposto de que os leitores estarão munidos de um prévio conhecimento na história de movimentos, das publicações referidas, do quadro histórico a nível internacional em que as produções se inserem, até mesmo em pequenos pormenores de carácter histórico-cultural específico, como vocabulário específico dos anos 20 ou a importância de uma dada gráfica. Mais uma vez, talvez este seja um problema nosso, um nível pessoal de falta de cultura geral, mas estamos em crer que nestes casos em particular se veria como bom ponto de partida uma generosidade em construir uma maior contextualização, uma mais clara e integrada informação, ou até uma breve nota. Poder-se-á exemplificar essa situação com os nomes de Francisco Valença ou de Roberto Nobre, que não são nomes da mesma envergadura e visibilidade dos de Stuart Carvalhais, Emmérico Nunes ou Carlos Botelho. A ausência de imagens destes artistas “secundários” não abona em favor do problema, e quase que incentiva à sua menorização no interior do discurso global do livro, ou em relação aos outros artistas mais famosos.
Um dos princípios que pensava presidirem a um livro que se presta à discussão da ilustração, provavelmente adicional erro da nossa perspectiva, é o de apresentar, a título de exemplo, de explicitação das teses que se pretendem avançar (de “ilustração”, como soe dizer-se, passe a redundância), leituras mínimas, moleculares, próximas [o que se chama em inglês de close readings], de ilustrações propriamente ditas, com toda a panóplia de instrumentos que se julguem pertinentes conforme o contexto. Ora, isso é cumprido pela investigadora até certo ponto. Utilizando chaves analíticas que dizem respeito à estilística gráfica, à composição e ao design, à história da arte, à descrição técnica e ainda com chamadas a outras disciplinas humanas como a sociologia, a história e os estudos culturais, fazem-se essas leituras mínimas com um punhado de exemplos. Estranhamente, as leituras incidem sobre imagens que não estão disponíveis no próprio livro, estando referenciados nas notas de rodapé. É claro que não se pode esperar que se possam recolher e expor todas as imagens que se desejem, e não é, de todo, um exercício displicente convidar os leitores a fazerem o seu próprio caminho investigativo visitando bibliotecas e hemerotecas para que verifiquem por si mesmos a justeza dessa leitura. No entanto, e de novo incorrendo eventualmente num terrível erro de perspectiva, julgávamos que um dos gestos de trabalhos desta natureza, divulgador e pedagógico, que permitem uma exposição mais alargada, que se pretendem de acessibilidade e conhecimento, deveriam assegurar essa mesma acessibilidade e possibilidade de conhecimento imediato. A menos que possamos encontrar somente nesta forma de o fazer a eleição deste livro enquanto manual da própria instituição, e sirva de fomento a essa investigação arquivística. O problema, ou outro factor de estranhamento ainda em relação a essa opção, é que à medida que essas leituras são feitas, as páginas estão ocupadas por imagens, algumas delas proeminentemente, mas sem serem alvo dessas mesmas leituras. Há um desequilíbrio aqui inoperante, uma oportunidade desperdiçada, uma falta de ancoramento directo. Mais adiante, ainda voltaremos a outros problemas associados às imagens elas mesmas, mas um dos aspectos que podemos já apontar é que esta ausência de imagens leva à situação da autora descrever verbalmente um qualquer cartoon ou gag, reduzindo a eficiência (eventual, pois não temos acesso a ela no livro) do desenho à punchline verbal, minando dessa forma, logo à partida e na ontologia dessa comunicação, a mais-valia da ilustração.
A multiplicação dos instrumentos é sempre produtiva, mas apenas se operarem num conjunto convergente, e não numa fragmentação do discurso. Há uma constante atenção para com os conteúdos das publicações, chegando-se mesmo a resumos de alguns dos escritos, mas não se trata nem de uma análise exaustiva nem de um trabalho de síntese. É dispersão. Parágrafos dedicados às crónicas de X ou Y não parecem ter lugar no projecto, já que não se alia essa leitura à ilustração que a acompanharia, a qual deveria ser o objecto principal. E as mais das vezes as leituras antropológicas ou sociológicas são superficiais, não indo além da nota, da referência por desdobrar.
A dado momento, lê-se o seguinte (pgs- 89-90): “Durante vinte e dois anos estas páginas [fala-se da Presença] foram votadas a grandes variações de estilo. Umas de modernismo inventivo vanguardista, outras no regresso ao desenho pormenorizado naturalista e saturado. As razões podem atribuir-se à participação do fenómeno comum de todo o movimento português deste período, o vanguardismo era frequentemente trocado pelo academismo naturalista e comezinho que provavelmente o ritmo semanal e regular desgastante tornava difícil de fazer face sempre de forma inventiva e criativa”. Para além da construção frásica arrevezada, o cerne desta frase não é claro. É o problema apontado imputável aos autores particulares ou ao próprio projecto editorial, necessariamente heterogéneo? Eis o problema de empregar vários focos ao mesmo tempo, sem a preocupação de os coordenar num instrumento pronto a alternar entre eles sucessiva e rapidamente de modo suave e integrado.
Por estas razões, arriscamo-nos a dizer, roçando o abuso da leitura, que uma separação por artistas (ainda que este punhado reduzido) ou por campos da ilustração (que seria preciso definir com clareza: de moda, publicidade, cartoon, etc.) talvez se revelasse mais estruturante, ou se cada uma destas publicações tivesse sido alvo de uma abordagem mais sistemática. Para um estudo panorâmico, é necessária a análise comparativa e, para esta, é necessário por sua vez seguirem-se elementos ou princípios comuns de modo sistemático. Esse ponto de partida, digamos como que um quadro ou uma grelha aplicada a todos os títulos, não tem de ser apresentado ao público “a seco” (pode sê-lo sob a forma de anexos, todavia) nem de impedir uma óptica atenta às especificidades de cada publicação, que obrigarão a instrumentos e desvios próprios. No entanto, o texto oscila nos critérios (aparentemente) empregues (análise de conteúdos, das circunstâncias editoriais em termos financeiros, políticos, culturais, a própria orquestração das revistas, filiações, protagonismos, etc.), não atingindo coalescências discursivas. Por essa razão, o resultado é algo desigual, desconexo e até mesmo improdutivo, no que diz respeito a vir a servir a trabalhos futuros que partissem do material coligido e estudado neste volume. O facto do “1” do título não ser, em qualquer momento, explicado – o que se seguirá? A ordem cronológica, no interior de revistas? Outro tipo de publicações do mesmo período? Diferenciar-se-á a ilustração da banda desenhada (a referência ao ABCzinho não esclarece)? Procurar-se-ão outros nomes, outros campos, outros modos de produção, outro quadro de referências? O sistema não é explícito – não nos coloca num caminho aberto à expectativa.
Um outro tema interno a este volume, aqui e ali aventado pela autora, é o da representação da mulher, “mundana”, de Lisboa enquanto símbolo ideal dessa mesma cidade na sua existência moderna. O que parecia promissor, e sobre o qual são dados inúmeros exemplos ao longo da obra, não acaba por se juntar numa ideia exacta, jamais sequer transparecendo qual a leitura global e crítica que a autora lhe votaria. Por exemplo, na página 109, refere-se Lobo à representação de “figuras femininas em atitudes modernas mas banais (ao volante, no teatro, ou no palco)”, salientando que é o mostrar das pernas o mais importante objectivo nas ilustrações, e não uma outra maior dimensão. Não se depreende, porém, qual o facto da banalidade, qual o da modernidade. Uma mulher ao volante seria algo banal em 1920? Em Portugal? Não seria essa uma forma de a colocar numa esfera de autonomia possível, para a época? Não poderíamos conceber que, no quadro mental de então, se pudesse imaginar seriamente – não por não ser sério, mas por haver grandes obstáculos ainda a conquistar – numa mulher comandando o exército, ou no papel de primeira-ministra, quando ainda hoje isso seria novidade e motivo de espanto (não obstante a figura de Maria de Lourdes Pintassilgo).
Não é totalmente clara, também, a razão de ter dois capítulos separados, um dedicado às capas das publicações estudadas, e outro à ilustração de moda. No primeiro caso, pois além de se retornar à lista anteriormente percorrida, e tendo em conta que a esmagadora maioria das imagens apresentadas (ainda que não discutidas directamente) são efectivamente de capas, não encontramos nesse afunilamento uma promessa de uma análise mais cabal, integrada, específica, sistemática. Os comentários acabam por se esfumar em brevíssimas notas que teriam todo o lugar nos capítulos anteriores. Não há qualquer diferença de natureza, como se esperaria desta secção. Já no que diz respeito ao capítulo sobre a ilustração de moda, outros problemas ocorrem. Em primeiro lugar, mas herdeiro de algo a que já chamámos a atenção, não há uma procura, não digo por uma definição, mas por uma ideia estrutural do que poderá ou não ser considerado ilustração de moda, para depois a identificar e discutir nos autores portugueses assinalados. A meu ver, um modo de entender a ilustração de moda, algo redutor, sem dúvida, é a de que se trata da criação de imagens que contextualizem uma dada peça de vestuário num contexto gráfico, uma sua ambientação, por assim dizer, com um intuito comercial ou de propaganda de um estilo de vida. As mais das vezes a ilustração de moda é uma tradução de um ilustrador sobre uma peça de design de um estilista, ou uma forma de vestir associada a uma cultura (um olhar de pendor antropológico, como acontecia nos Almanaques até ao século XIX) ou a um movimento (num olhar mais de reportagem cultural). Este seria um eventual modo de abrir essa perspectiva, mais uma vez dando continuidade a vozes da especialidade, como as de Madeleine Ginsburg ou Cally Blackman. No entanto, apesar de se construir um diálogo entre alguns autores portugueses e uma bateria de ilustradores de moda de primeira água destes períodos (Georges Lepape, Paul Iribe, George Barbier, René Gruau), há um novo desequilíbrio, pois todos os internacionais são de facto ilustradores a trabalhar sobre peças de estilistas, também de primeira água, e o caso dos portugueses não é identificado: são apenas vontades gerais de representação da moda nas ruas, cópias dos ecos de Paris, ou um diálogo efectivo com costureiros nacionais? Das 21 imagens desta secção, apenas 12 são de autores portugueses, 9 de Jorge Barradas, 3 de António Soares. De novo, sublinhe-se a ausência da ilustração de um modo efectivo num livro sobre ilustração.
Nesta estranha equação de tantos exemplos estrangeiros num livro sobre autores portugueses, indique-se que o excelente anexo de biografias dos ilustradores (se bem que ocupar o espaço com Almada, Bernardo Marques ou Stuart pareça exagerado, já que não falta matéria disponível sobre esses autores) apresenta 33 nomes, mas com mais 15 de autores estrangeiros, de várias nacionalidades e de vários campos da ilustração (mas não Grosz, o qual se havia citado repetidamente, em comparações directas a alguns autores portugueses, sobretudo Bernardo Marques). Não seria de remeter esses nomes a outras obras mais completas, reservando-se uma maior concentração nos autores portugueses menos famosos, e sobre cujas carreiras há pouca informação? Tendo em conta que a autora teve acesso a alguns ilustradores e/ou suas famílias, esperar-se-ia uma mais palpável apresentação de subsídios novos e organizados.
No entanto, reservamos as últimas duas considerações para os dois problemas mais incontornáveis e espinhosos.
O primeiro diz respeito à redacção do texto, do discurso em si. A organização dos parágrafos é algo confusa, com retornos a ideias anteriormente apontadas, não para inflectir um qualquer pensamento adicional, correctivo, complementar, mas algo que ficara, de facto, fora do local mais correcto. Muitas são as citações (entre aspas) que não têm uma origem clara, já que as notas de rodapé nos conduzem a um número múltiplo das revistas em discussão, ficando na dúvida se se tratam das fontes das imagens referidas ou se da frase citada (mas sem autor, sem contextualização?). Esperar-se-ia também que a bibliografia se visse repercutida nas notas, na sua imbricação com o discurso da autora ao longo do livro, mas a natureza semi-académica do livro não parece prestar-se a isso. São algumas as gralhas, assim como as aspas, chavões, hífens, travessões e outros diacríticos mal-colocados. São demasiadas as vírgulas separando sujeito, predicado e objectos directo e indirecto levando a uma leitura trôpega. Esta sofre ainda com os muitos exemplos de anacolutos, que minam em absoluto a clareza das ideias da autora e, assim, ao estudo cabal deste campo criativo. Vejamos alguns exemplos: “Os personagens dos seus [Bernardo Marques] primeiros desenhos influenciados por Christiano Cruz – ídolo de Bernardo Marques e de toda a sua geração – que se retirou da cena artística quando Bernardo nela se iniciava, deixando atrás de si um rasto de admiração justificadas pela originalidade e rara qualidade da sua obra que inspirou decisivamente o jovem Bernardo” (pg. 31). “Existem nomes maiores e nomes menores nesta lista, mas alguns de grande importância, mas faltando artistas mais conhecidos das ilustrações que então se publicavam em Lisboa, como Barradas e António Soares, capistas excelentes dos Anos 20 e 30, ou Carlos Botelho” (pgs. 90-91). “António Soares foi o principal responsável pelas capas da Ilustração Portuguesa, estava fora em todos estes anos, e em sua 'substituição' aparecia o nome de Jorge Barradas nas capas do ABC, que marcaram o perfil deste magazine” (pg. 106). Quase sempre nos vemos obrigados a ler duas vezes para perceber a ideia subjacente, que poderia ter sido apresentada de um modo mais nítido. Enfim, parece ter havido um pobre trabalho de revisão textual.
Finalmente, retornemos à questão das imagens. Das 110 imagens numeradas e legendadas, apenas 4 delas ocupam uma página inteira (as únicas que sangram a página são pormenores de outras), sendo uma delas de um autor estrangeiro (por mais marcante que tenha sido, como Bakst). Quase todas são de capas, como vimos, e não de exemplos do interior das publicações, citados no texto. Quase todas têm um tamanho minúsculo, quase ridículo para percebermos as ideias avançadas no texto ou apreciarmos a arte (um leitor falou mesmo de “selinhos”). E se estivéssemos perante um projecto enciclopédico e de consulta rápida como o de Johanna Drucker e Emily McVarish ou os de Steven Heller e Seymour Chwast, essa opção talvez se tivesse justificado. Muitas são as imagens cortadas de um modo totalmente aleatório, outras com uma péssima resolução. Não se esperaria de uma história da ilustração um maior relevo das imagens? Poder-se-á ainda dizer que o problema das imagens não é da responsabilidade da autora. É possível.
Todavia, quando no livro se fala de uma investigação com 20 anos e, para mais, se faz uma promessa de colmatar uma falha gravíssima na nossa História da Arte, pouco atenta a este círculo de produção, o domínio visual não é o trunfo deste livro. Mas o discursivo também se apresenta titubeante. A bateria imensa de informações é incrível, e aprende-se muito com este livro, factos e dados, mas também – o mais importante – uma nova forma de pensar esta arte e as relações estabelecidas entre esta e outras áreas da criação, quer em Portugal quer num contexto maior, e entre os ilustradores. A autora procura levantar o tipo de discurso possível sobre a ilustração, assegurando-lhe um lugar de destaque na cidadania na História de Arte, prosseguindo o trabalho de alguns historiadores e críticos que se dedicaram a nomes particulares desta área criativa, e conseguindo ir muito além de repositórios de datas e listas, que é o que passa(va) por História da Ilustração entre nós. Os instrumentos são correctos, estão presentes e apontam na direcção feliz. O problema está no veículo composto com essas informações, o qual se torna por vezes confuso, ao ponto de não transmitir essas lições da melhor maneira. Esperemos que o segundo volume repare as falhas que este apresenta, e o projecto se venha a tornar cada vez mais nítido.
Nota: livro pertencente à Biblioteca da ESAP-Guimarães, após uma permuta com a Directora da Biblioteca do IADE, a quem agradecemos (tendo sido nós a servir de ponto de contacto). Além do mais, são muitas as pessoas a quem nos sentimos na obrigação de agradecer, pela tremenda aprendizagem que temos feito ao longo destes últimos anos em torno destas questões da ilustração. Algumas apontando livros, outros desvendando o seu trabalho, técnicas e saberes, outros ainda obrigando a pensar de um modo mais amplo. O trabalho nunca se faz sozinho, e a eles agradeço.

4 de fevereiro de 2010

O livro negro das cores. Menena Cotín e Rosana Faría (Bruaá)



A tarefa da crítica depara-se, de quando em vez, com os seus próprios limites, no sentido em que o discurso que cria, e que deseja, se opera no interior de um saber levado até às consequências da sua própria limitação, pois só aí é que nascem as questões, mesmo que jamais sejam respondidas, em vez de uma aproximação segura, incontroversa, de apresentação informativa – deixando de ser crítica, portanto. Mas por vezes ela depara-se com um território qualquer que ultrapassa esses limites, e passa a estender-se uma outra área, de ignorância, de escolhos conceptuais, de não-compreensão, até mesmo de impossibilidade de aproximação, por menor que esta pudesse ser. [nota pessoal: já tinha este livro, numa sua versão espanhola e francesa, há dois anos, mas não me era possível escrever sobre ele; a sua tradução, mas também o cruzamento com uma investigadora, levou a este texto, assinado a dois.]
O livro negro das cores é um desses objectos cuja leitura lança a tarefa crítica directamente aos escolhos. São tamanhos os riscos que se tomam ao abordar um livro destes. Para mais, por não sermos (e não o desejarmos ser) os seus leitores ideais. Ler este livro é lê-lo com medo, desconhecimento e apenas uma tentativa votada ao insucesso. É à luz desse perigo que o texto que se segue deve ser lido.
Muitos artistas que trabalham o desenho, desde aqueles que se expressam através do desenho quotidiano dos diários gráficos aos que constituem inúmeras séries como Robert Longo, expressam muitas vezes a entrega dos cinco sentidos em toda a criação do desenho. Querem eles com isto dizer, para além de um certa poeticidade da língua, de uma retórica assaz constante, que o acto de criação apenas é possível com uma total concentração, e que tal concentração apenas é possível de atingir se real. Uma forma de entender essa entrega é a capacidade que os autores têm de, a cada vez que revisitam com o olhar o desenho feito, possam recuperar todo o ambiente e sensações do momento da sua criação, como se todo o corpo passasse a tornar-se parte intrínseca, através de ligações subtis, da marca deixada na superfície (a que nós, meros espectadores, apenas temos acesso).
Ao deparamo-nos com um livro para cegos, e mormente, um livro ilustrado para cegos, por mais paradoxal que isso nos pareça, essa imagem é destruída, e somos confrontados com uma realidade mais prosaica, por um lado – há mesmo a ausência de um dos sentidos –, e, por outro, mais mais verdadeira – exploram-se os sentidos de um modo mais holístico, usualmente preterido. No caso presente, trata-se de assumir a necessidade de ler pelo toque.
Esta dimensão do toque traz à tona uma complexa rede de sensações e percepções que baralha novamente a relação entre intimidade e distância do acto de leitura, de fruição de uma ilustração. Convenhamos, sem titubeações, que não leremos jamais este livro como os cegos (assim o esperamos, sem com isso desejar diminuir o valor humano dos cegos). Por não sabermos ler Braille, por não termos a sensibilidade e aprendizagem suficientes para diferenciar e interpretar e ler as inscrições em volume (quer a escrita quer as imagens), por não podermos compreender o jogo que o livro promete, implica, e cumpre. Temos sempre o atalho mais fácil: vemos.
A questão da leitura dos cegos é um território complexíssimo sobre o qual não temos qualquer formação que nos permita ir além de breves e superficiais leituras da matéria. Como é que poderemos compreender a emergência de imagens sem imagens? O reconhecimento das imagens apenas nasce num caso de categorização delas mesmas. Quando lemos, antes de ler, vemos a forma das letras e apreendemo-las a partir de um fundo, de uma biblioteca de formas análogas. O que sucederá quando essa biblioteca não existe? Mesmo a capacidade de ler através do toque, a “leitura de relevos” (a escrita Braille, as formas) se diferencia, drasticamente por vezes, no caso de cego congénitos, no caso de pessoas que tenham cegado na infância (antes mesmo da aprendizagem verbal e das categorias que isso acarreta), naquelas que cegaram em adultos, tal como em relação ao nível sócio-cultural dessa pessoa… e tantos outros factores que ditam a capacidade e o grau de aprendizagem necessários à “leitura”. Um aviso à ausência da universalidade de método ou de leitores, o que é bem diferente do que sucede em relação às imagens junto aos que vêem (apesar de ser necessário alertar para a parte que cabe aos condicionamentos sociais e culturais da própria apreensão das imagens, feitas pelo homem ou “naturais”).
Walter Benjamin, no seu influente “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica” (cito a 3ª versão escolhida por João Barrento na sua tradução, em A Modernidade, Assírio & Alvim), capítulo XV, diferencia a concentração da distracção, aproximando a primeira da contemplação, um grau superno de atenção visual, e a segunda ao mergulho típico das massas em determinadas obras de arte tais como as do cinema ou da arquitectura. Falando destas últimas, diz o seguinte: “são objecto de uma recepção dupla: pelo seu uso e pela sua percepção; ou melhor, táctil e opticamente”. Apesar de não o citar e empregar palavras mais usuais, faz recordar a oposição que Alois Riegl havia proposto entre o óptico e o háptico, isto é, uma aproximação que tem a ver com o distanciamento necessário para a instauração da percepção visual e a aproximação do toque, a que a compreensão e apreciação da escultura, por exemplo, obriga (não se trata de tocar literalmente na estátua, mas em abordá-la enquanto forma moldada, de lhe compreender a tridimensionalidade, inclusive com a deslocação que o corpo faz em seu torno; é por isso que cineastas que trabalhem profundamente a forma moldável, como Jan Svankmajer, fazem derrubar estas barreiras). O háptico, portanto, permite um grau de conhecimento menos mediado, logo mais íntimo, material e próximo da propriopercepção. Dois investigadores do campo dos cegos, Loomis e Lederman, em Tactual perception, falam mesmo de percepções “proximais” (o toque) e “distais” (visão e audição). Mais adiante, Benjamin acrescenta: “Porque do lado táctil não existe qualquer espécie de contrapartida para a contemplação na percepção óptica. A recepção táctil efectua-se menos pela via da atenção que pela do hábito”. O filósofo falava do reequilíbrio entre as auras cultual e de exposição que era operado pelo advento de determinadas formas da arte, tecnologicamente determinadas (o cinema, sobretudo, mas também a banda desenhada?), logo não se pode admitir um qualquer abuso de estar a negar uma possível correspondência contemplação não-visual tal como aquela que pretendemos entender junto aos cegos.
Todavia, a verdade é que apesar de parecer ser possível identificar uma mesma estrutura e paridade de conceitos entre estes binómios (óptico-háptico e distal-proximal), alguns estudos revelam que as consequências perceptivas e, logo, conceptualizadoras, entre o tacto e a visão são bem mais comuns do que imaginaríamos, informados somente pelo senso comum, ou melhor, uma abordagem primária. Num artigo por John M. Kennedy (“How the Blind Draw”, publicado na Scientific American, Janeiro 1997), o autor aponta precisamente nesse sentido. O investigador dá-nos conta das suas conclusões a partir de toda uma série de diversos testes e experiências, sendo elas a de que quer os cegos quer os que vêem partilham, em larga medida, princípios de representação do próximo-afastado, perspectiva, contorno, distância, etc.
Tudo isto para dizer que, quer numa apreciação que tome em conta o abismo intransponível da nossa experiência de seres capazes de ver daqueles que não vêem, quer numa abordagem que procure os pontos em comum, a existência de livros ilustrados para cegos desperta desde logo uma ideia paradoxal. Existem alguns livros desta categoria, ou espécie. As mais das vezes tratam-se de livros de histórias relativamente simples (no que diz respeito às narrativas, à elaboração estética, aos princípios de inventabilidade) em que as formas são traduzidas em linhas impressas em relevo e que permite ao leitor (usualmente crianças) seguirem o percurso. É o caso de Goin’ on a bear hunt, de Suzette Wright, por exemplo. Seria ridículo criticar esses livros por empregar imagens simplificadas (à la Dick Bruna) ou histórias lineares, já que o seu propósito é diferente da esmagadora maioria dos livros ilustrados que pertencem à nossa esfera de textos. Não é já tanto desejar que procurassem cumprir um trabalho tão elaborado em termos poéticos como “os outros”.
O livro negro das cores é, sem dúvida, um livro belo. E que cumpre essa função poética a que nos referimos. Acompanhando um protagonista ausente, que imaginamos como um jovem cego que descreve a sua percepção multi-sensorial (mas não pan-sensorial, já que a esfera da visão está ausente) das cores, tecem-se páginas em que é a linguagem, despertando o olfacto, o toque e o sabor, que nos dá acesso às cores que conhecemos do espectro humano. Vivacidade, sinestesia, vibração, entrega de todo o corpo são os elementos despertados pela leitura, degustação, auscultação, manuseamento deste objecto. As imagens não se afastam em demasia do que o texto cumpre, elaborando-se complexas texturas que quererão transmitir-nos as sensações anexas às cores respectivas. A impressão a dois pretos, ou melhor, a um tratamento diferenciado nas linhas que compõem o relevo, leva a que nos obrigue, aos leitores que vêem, a balançar o livro para ver o brilho e o contraste. Os leitores cegos passearão os dedos para as interpretar.
Todavia, permitam-nos que desconfiemos que este livro, sem dúvida, belo, se trata mais rapidamente de um livro de sensibilização destas questões para nós, do que um livro verdadeiramente construído para os cegos. Este livro devolve-nos, parcialmente, ou abre-nos a perspectiva, à compreensão da situação dos cegos, mas nunca, jamais, essa mesma experiência.
Uma aluna e investigadora do Mestrado da ESAP-Guimarães, Raquel Leitão, encontra-se actualmente a desenvolver um projecto de desenvolvimento de livros ilustrados para cegos, trabalhando com eles.
Desafiando-a a ler este livro com as pessoas com quem desenvolve o seu trabalho, apenas um grupo de sete pessoas nesse momento particular, fez-me gentilmente saber que a apreciação do livro levantou alguns problemas. Cito: “Todos se queixaram do Braille estar muito apagado, preferindo quase todos que lhes lesse o texto. Três deles (um adulto e dois adolescentes) viram as primeiras páginas e como não perceberam o que lá estava desistiram e não gostaram. Os outros quatro (um adulto e três adolescente) viram até ao fim, mostraram muito interesse (embora tenham falhado na identificação da maioria das imagens) e disseram que gostaram.
“Na minha opinião, o texto está excelente, com um sentido estético muito particular, conseguindo falar de uma questão tão difícil para os cegos como é a questão da cor. Mas ao nível das ilustrações, há páginas que resultam muitíssimo bem, como é o caso das que fazem alusão à água, à chuva, à relva e aos cabelos. Os cegos sentem as texturas e com a ajuda do texto identificam facilmente as imagens. No entanto, sendo a minha principal preocupação neste momento a eficácia da comunicação, verifiquei que outras são demasiado complexas, com muitas formas, com muito detalhe, fazendo com que os cegos confundam com muitos outros elementos que não os pretendidos. Em alguns casos, para além da complexidade, considero que as imagens deviam ter uma ligação mais directa com o texto para que não surjam dúvidas, como é o caso da página referente ao azul, em que se fala sobre o céu e o sol mas a representação é de um papagaio de papel. Costuma dizer-se que uma imagem vale mil palavras, mas no caso das ilustrações em relevo não se pode aplicar. Uma ilustração táctil sem palavras torna-se quase sempre ambígua ou mesmo vazia.
“É preciso também compreender um problema extremamente difícil de contornar: é a questão da técnica utilizada para produzir relevos. Existem técnicas artesanais óptimas para leitores cegos [papel rugoso, texturas diferentes, relevo proeminente]. [Parece ter bons resultados], dizem que se “vê” muito bem o relevo. Mas as técnicas disponíveis para editar um livro com relevos em massa são poucas e com muitas limitações ao nível da percepção. Assim, o livro deve ser pensado tendo sempre presentes essas limitações. Por outras palavras, ao desenvolver ilustrações para cegos, a técnica deve ter um papel importante na definição das próprias imagens”.
Convenhamos: um grupo de sete leitores é muito pouco para uma verdadeira apreciação global, para qualquer tipo de conclusão. Quer a minha leitura quer a de Raquel Leitão não se atreve a passar, por agora, de uma ideia primeira das questões a levantar e explorar (e que a investigadora explorará), e não põe em questão o valor e conquista de beleza que o livro tem, sobretudo para nós. Colocado, porém, nessoutro território sobre o qual obriga a pensar, O livro negro das cores parece carecer de uma apreciação mais específica, de um trabalho mais aturado que permita uma leitura mais exacta e justa.
Contudo, e finalmente, o livro das duas autoras venezuelanas é um livro superno, que serve para ampliar os nossos horizontes de experiência e a nossa compreensão, quer do mundo quer d[a questão d]o Outro. Haverá maior galardão num livro?
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio da edição portuguesa; e a Raquel Leitão, pela partilha do seu saber, do seu trabalho e do seu projecto, sobre o qual esperamos dar notícia neste espaço no momento certo. Este texto não teria sido escrito sem o seu apoio.

O Combate Ilustrado; de 1986 a 2007. AAVV (Edições Combate)



Balanço 3. Uma outra forma ainda de criar balanços é constituído pelas antologias, reunindo materiais diversos, heteróclitos e dispersos, irmanados por um qualquer princípio organizador. Neste caso, o facto de estarem relacionados com uma publicação. A revista Combate era um órgão periódico afecto ao Partido Socialista Revolucionário, uma das colunas vertebrais do que se tornaria uma nova linha da esquerda em Portugal e que hoje faz corpo presente na vida política pelo Bloco de Esquerda. Não me competirá a mim falar do seu papel na esfera do político, nem nesse fenómeno histórico, mas sim apontar como essa publicação, ora próxima ora mais afastada dos princípios políticos estritos do PSR, contava com a colaboração de toda uma bateria do que seria visto, e é visto, como um par de gerações de ilustradores portugueses.
É muito difícil destrinçar a presença desses autores do papel fundamental, senão mesmo fundador, do director de arte dessa publicação, Jorge Silva. O papel deste não pode ser alguma vez despromovido na importância que teve na visibilidade, amplitude e presença destes nomes da ilustração, até porque assumiria funções idênticas no jornal Público (recordemos a presença inédita de ilustradores nesse jornal sob a sua direcção, incluíndo os números especiais do Salão Lisboa, exclusivamente ilustrados), numa série de editoras e projectos editoriais e gráficos, inclusive camarárias (em Lisboa) e junto à Bedeteca de Lisboa, sobretudo no núcleo das exposições Ilustração Portuguesa. Jorge Silva não apenas foi promotor desses nomes, como paladino da presença da ilustração nesses centros, atento e condutor dos melhores trabalhos, propugnador da ontologia da ilustração e propulsionador do melhor ambiente possível para que ela fosse transmitida da forma mais nobre e acabada possível. Haverá eventualmente casos em que se poderiam fazer críticas ou acertos mais específicos em casos concretos, escolhas, mas isso caberia no foro de um trabalho mais especializado, e em nada diminuiria, repito, o papel fundamental e incontornável que teve nessa mesma produção, comparável a mais ninguém em termos individuais. É ele quem faz a apresentação (e edição) desta antologia, com todo o direito, tomando a palavra num prefácio que faz as vezes de contextualizador histórico, especificador das circunstâncias de produção, das estratégias e das escolhas. Jorge Silva era, ele mesmo, ilustrador, e este volume dá-nos a conhecer alguns dos seus trabalhos. Não será ele mesmo quem assumiria um papel central enquanto artista e criador de ilustração, mas sem dúvida que é a ele a quem todo o mote da dança que se seguiria pertence.
A apresentação destas imagens é, inevitavelmente, desassociada dos textos que instigaram a criação das imagens (a maioria, pois algumas são autónomas e existem casos mesmo de banda desenhada), mas – como é costumeiro nas publicações deste género, como os catálogos da Ilustração Portuguesa que dirigiu – existem sempre as informações relativas à data, à técnica, ao título (nos casos pertinentes, dos artigos correspondentes e dos seus autores). O editor informa que a organização do volume segue uma linha cronológica por “preguiça assumida”, mas as alternativas (por autor, por “temas” fosse isso possível e categorizável, ou por natureza da ilustração, ainda mais complicado) levantariam outras questões que não me parecem ser as centrais deste volume. Não é ele completo, mas sim revelador de uma escolha segunda sobre as presenças originais, mas arrisco a ideia de que este é um retrato justo e amplo das gerações que pelo Combate passaram, lá deixaram marca e hoje ainda a exercem. Nalguns casos, é curioso revisitar trabalhos de pessoas que cumprem outros papéis hoje em dia (o caso de João Garcia Miguel, ou Jonas, hoje conhecido encenador e director teatral), noutros, é ver os primeiros passos de quem hoje ocupa lugares de destaque nesta arte específica (Richard Câmara, José Feitor, Pedro Zamith, João Fazenda), noutros ainda, é ver a verve e o exercício da cidadania política - não confundir com proselitismo ou militância dogmático-partidária, já que não havia qualquer relação entre a participação artística na revista e a integração partidária – neste particular contexto (José Carlos Fernandes, José Relvas, Alice Geirinhas, João Fonte Santa, Pedro Amaral, Pedro Burgos, Joanna Latka, e tantos outros).
No fundo, é uma forma de dar a ver, fora do contexto do jornal, o qual eventualmente chegaria às mãos somente daqueles que partilhariam alguns princípios em comum, afinidades, ou confortos ideológicos que não eram impeditivos, toda uma série de vozes da ilustração portuguesa contemporânea, diversa, musculada, viva e recomendada.
Nota: agradecimentos a José Feitor, pelo empréstimo do seu exemplar.

Almanaque FIBDA XX Anos (FIBDA)

Balanço 2.
Não há outro modo de o dizer: apesar desta ser uma publicação da responsabilidade e vontade do próprio FIBDA, o convite que estenderam a Sara Figueiredo Costa (que, digo desde já com a finalidade da clareza crítica e confissão de conflito de interesses, é não apenas minha amiga pessoal, como companheira de armas em várias frentes associadas à banda desenhada, ilustração e áreas contíguas, vítima das minhas insistentes dúvidas) leva a uma importante inflexão no tipo de discurso pelo qual o FIBDA é conhecido, ou bem pelo contrário, pouco conhecido, no que diz respeito às publicações que lhe estão associadas (mormente, os catálogos de cada ano).
O livro em si apresenta-se com um fim extremamente simples. Fazer um breve balanço da história de duas décadas completas da elaboração do seu festival. Assim sendo, temos as inevitáveis listas de datas, premiados, participantes, etc., mas essa inevitabilidade nada tem de negativo, bem pelo contrário, são um instrumentos sine qua non não se poderia exercer um balanço verdadeiramente digno desse nome, isto é, com distanciamento crítico, de catalogação e categorização dos gestos, de remistura e refundição do olhar que o FIBDA proporcionou sobre a produção de banda desenhada. O papel deste Festival, assim como do CNBDI, ao qual está intrinsecamente ligado, é fulcral no avanço desta arte em termos de memória histórica, de criação de massa crítica, de fomento do estudo desta arte. Nem sempre os gestos do FIBDA se revestiram de interesse crítico, e muitas vezes é mesmo uma política acriteriosa que pauta as exposições, as formas de aproximação, as políticas de divulgação e a preocupação com os públicos.
Este volume tem textos de Nelson Dona e de Cristina Gouveia, o primeiro incidindo sobre o traço geral percorrido pelo Festival, cuja importância é inegável, e o segundo focando num dos grandes trunfos do CNBDI, que é o papel que tem em salvaguardar parte do espólio artístico da banda desenhada portuguesa, através dos originais que compõe a sua colecção. Mais, o volume tem um anexo com uma selecção ponderada e rica de alguns desses tesouros. São duas das dimensões que tornam o FIBDA o maior festival neste momento em Portugal desta área, e que, por essa mesma razão, lhe incutem responsabilidades que nem sempre são cumpridas da melhor forma ou pelo menos da forma mais acabada. Mas há passos nessa direcção, não apenas assegurados pelos variadíssimos colaboradores de sempre do FIBDA, os investigadores e comissários e divulgadores de banda desenhada que a cada ano contribuem com o seu gesto integrado, mas também com os novos colaboradores que tentam pequenas curvas. Neste último capítulo, Sara Figueiredo Costa, que colabora com o FIBDA de há 5 anos para cá, tem demonstrado um trabalho aturado, sobretudo na dimensão textual (é neste momento que devo tornar claro que também eu tenho colaborado esporadicamente com o FIBDA, sobretudo com pequenas exposições; o texto com que colaboro neste volume diz respeito à exposição sobre alguns autores contemporâneos, e, por essa razão, é um tanto ou quanto deslocado do âmbito do Almanaque, perspectiva que ganhei posteriormente e que não atribuo aos seus editores, a quem reitero o agradecimento pelo convite).
Dito isto, o coração deste livro é o texto de S. F. Costa, o qual aborda questões que atravessam os últimos 20 anos da banda desenhada no país, passando pela questão maior da edição, dos papéis dos festivais, da sua recepção social, da sua divulgação mediática, da sua apreciação crítica e do seu ensino. Sendo um texto de balanço, e não uma tese, o texto é justíssimo no seu equilíbrio, nas vozes participantes, nas perspectivas avançadas. Trata-se menos de um trabalho de conclusões (se bem que ele as avance ou proponha) do que uma agregação, explanação e esclarecimento do território sobre o qual importa fundar abordagens críticas. Algum trabalho nessas frentes está feito, mas não o suficiente. É isso a que S. F. Costa alerta, sobretudo, no seio precisamente de um dos eventos que o poderá melhor proporcionar.
Espero, portanto, que este livro sirva como o que ele é: não um retrato inerte do que passou, mas uma cunha que abra ainda mais uma porta cada vez mais ampla nos discursos em torno da banda desenhada.
Nota: agradecimentos ao FIBDA, pelo convite e pelo envio do livro.

Alix. Les premiers aventures. Jacques Martin (Casterman).

Balanço 1.
É sob o signo da morte de Martin que se seguem três textos, que pretendem dar conta de três formas (haverá mais) de fazer balanços, olhares “para trás”. Não que haja qualquer desejo de morbidez sob essa acção, mas antes demonstrar a necessária tomada de distância e corte (quase) permanente de elos afectivos que impediriam uma visão mais crítica e desapaixonada desses objectos. O primeiro desses balanços é cumprido pelas “edições integrais”.
Jacques Martin est mort. E com ele, fecha-se a vida de toda uma geração de autores que compuseram a história, a forma, e a ontologia da banda desenhada que mais tarde chamaríamos “franco-belga”, criando um monstro que amalgamava dois pólos distintos de criação, com características formais diferentes, atitudes diferentes, estratégias narrativas diferentes... Martin estava lado a lado, na lenta construção da banda desenhada belga de expressão francesa das décadas do pós-guerra, a Hergé, Jacobs, e Paul Cuvelier, como uma eventual “primeira linha”. As características que os unem, e que torna possível falarmos de uma “escola”, a qual chegaria a ser conhecida como tal (“École de Bruxelles”) é um desenho realista aliado a estratégias de simplificação de certas dimensões visuais (cor, sombras, contorno fechado, legibilidade das pranchas, adequação total da narrativa e das composição das imagens, naquilo que Peeters chamaria de “pranchas retóricas”, etc.), mas também todo um conjunto de elementos narratológicos, políticos e até morais associados: herói masculino e solitário, centralidade da ideia de aventura, de simplicidade e causalidade da diegese, apologia de uma ética paternalista na relação “detentores de poder iluminados e civilizadores” e “culturas autóctones”, ausência de papéis femininos de relevância (como apontava o estudo de Ana Bravo), inexistência de directas referências a relações amorosas (ou associação delas a uma dimensão casta e/ou cómica, dando azo eventualmente a interpretações desviantes, como a “homossexualidade” de Tintin, Blake e Mortimer, Corentin, Alix e Enak, etc.) e superioridade inquestionável da pureza dos fins dos protagonistas. Se falo de “monstro” é porque se seguiriam outras “escolas” mais tardias e cujas características, visuais ou narrativas (mas também de circunstância de produção e relações afectivas), se diferenciavam-se daquelas. Em grande destaque, as “escolas” de Marcinelle/Charleroi (Franquin, Jijé, Macherot, Peyo, Jean Roba, etc.) e, depois, a francesa (Goscinny e Uderzo, Gotlib, e os que ses seguiriam influenciados por certa banda desenhada norte-americana – a Mad, acima de tudo) [para uma abordagem disto, consultem-se Os Comics em Portugal, de António Dias de Deus e Leonardo De Sá, e Reading Bande Dessinée, de Ann Miller, entre outros].
É, portanto, uma triste coincidência que essa morte e esse fechamento de um capítulo da história da banda desenhada se faça no momento em que realmente se efectua a “recuperação da memória” da própria banda desenhada (tema recorrente neste espaço, ou filtro que nos interessa explorar continuamente). Já falámos de vários momentos e gestos editoriais que recuperam e reinscrevem textos antigos, clássicos ou perdidos, centrais ou descentrados, em edições de fácil e contextualizado alcance. No caso de Alix, alguns dos álbuns têm sido alvo de novas reformatações, juntando, como neste caso, dois álbuns (os dois primeiros) e um apêndice enciclopédico sobre uma qualquer civilização visitada por aquela personagem. A História, em Martin, apesar de matéria prima e sede da sua série mais famosa, pauta-se por um encontro entre a invenção, a condensação a-histórica, e o despertar do interesse factual, científico, possível. Muitos de nós, leitores de Martin, teremos eventualmente aprendido sobre o vigor cromático daquela antiguidade através dos seus desenhos, e não pelas vetustas gravuras a preto-e-branco que se queriam passar por “retratos” fiéis desses espaços de antanho... Mármore branco, linguagem perra, línguas mortas e silêncio de estado. Martin, bem pelo contrário, não se entregando a liberdades que viriam depois (penso em Les Olives Noirs, Isaac, o Pirata, Le troisième testament, apenas a título de exemplo), deu um passo na restituição para o vivo dessas cidades e culturas.
É difícil pensar contemporaneamente qual será o valor assumido por estes livros num período mais tardio da percepção social e do consumo cultural da banda desenhada. Apesar dos defensores ainda submersos numa visão nostálgica da sua própria infância a adolescência, a verdade é que todo esse capítulo, apesar da invenção da linguagem a que se dedicaram, não têm elementos que lhes permitam ser ainda vivos e interessantes para o público hodierno. Mesmo Tintin poderá vir a tornar-se um caso de arqueologia, mas não de “língua viva” para os leitores vindouros. É verdade que Birth of a Nation, de Griffith, também é alvo de duras críticas, mas apesar do seu doloroso conto, é ainda não apenas um factor de grande importância no olhar histórico do cinema como uma obra capaz de despertar uma maravilhada leitura (subtraindo os aspectos negativos, que são muitos). Pergunto-me se a “linha clara” de Tintin e de Alix e de Blake e Mortimer sobreviverão às gerações que procuram a restituição desse momento perdido das suas infâncias, e dos exercícios de pastiche a que dão azo (sobretudo a última série, mas também se adivinham outras). Na verdade, a inscrição de Martin nesse território não é totalmente plácido. Ele não conquistou a sua própria “linha clara” de imediato. Os primeiros álbuns, de que ambas as histórias deste volume são extraídas, apresentam o primeiro autor, ainda com alguns desequilíbrios terríveis, nomeadamente a falta de proporção entre as imensas cabeças e os corpos esquálidos, e o uso sempiterno de uma mão-cheia de rostos similares nas diversas personagens (tudo nos levaria a crer que queixos com cova eram um sinal universal nos seres humanos da época). Apenas mais tarde, por insistência (talvez coerção?) de Hergé, é que Martin se aproximou do “in-house style” do patriarca belga (sigo uma lição retirada de uma entrevista de Nuno Franco a Martin).
Talvez a sobrevivência destes livros passe pela sua reconsideração sob novas ópticas. Voltando a algo já citado anteriormente, neste caso em particular, a dimensão aparente e discutivelmente homossexual das personagens. Alix foi adoptado pela cultura homossexual com alguma celeridade. Não apenas o princípio mens sana in corpore sano parecia ser seguida pela personagem, como a relação com o seu pequeno egípcio foi desde logo colocada a essa luz. A verdade é que a ausência de papéis fortes femininos na esmagadora maioria das ficções destes autores – no universo de Tintin, de Blake & Mortimer, Corentin, etc. – não tem a ver, a meu ver, nem com a misoginia (mais uma vez, como sustenta, parcialmente, Ana Bravo) nem com pressupostos homossexuais (mesmo que se venha a descobrir algo da vida pessoal dos seus autores, o que é pouco importante e tresanda a biografismo fácil). Tem antes a ver com a inscrição numa tradição de ficção de aventuras para rapazes (maioritária e principalmente) herdada do século XIX (ou mais recuadamente ainda). Em suma, e visto de outro modo, numa mescla de psicologismo barato e observação directa, e ainda experiência, é uma típica atitude de rapazes declararem que “menina não entra”. Não me parece, contudo, que nenhuma dessas vias de análise possa vir a dar frutos substanciais, para além de uma divertida jogatina de análise. Não fazem parte, esses pressupostos, de uma concreta, analisável e palpável matéria dos seus livros. Ou melhor, é possível que essa leitura se possa fazer, mas terá sempre de se ancorar na cultura mais ampla do seu tempo, na economia de produção cultural em que se inserem, nas atitudes sócio-culturais da sua circunstância, mais do que se aterem à matéria narrativo-artística dos livros em si.
Todavia, visto por outro lado mais entregue e aberto, é talvez nessa via, reestruturante, de reescrita crítica, que eventualmente se encontrará o cerne do factor de sobrevivência deste e de outros livros. O tempo sabe.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.