26 de janeiro de 2010

Flores manchadas de sangue. Cláudio Seto (Devir Brasil)

Aquilo que afirmei em relação aos militares, a propósito da última série de Tardi, reitero em relação à figura dos samurais. Independentemente do fascínio que possam suscitar por provirem de uma cultura que (ainda) nos é totalmente estranha, aquilo que elas representam eticamente deveria merecer o nosso total repúdio. As questões de “honra” e de “dever” deveriam fazer-nos arrepiar, e não ser matéria de ilusório respeito.
Mas a verdade é que as personagens violentas – cowboys, super-heróis, conquistadores, piratas, colonizadores, ladrões e polícias, e samurais –, quando romantizadas pela cultura popular, tornam-se ícones sustentadores de ficções de um grande factor cool. E se estiverem associados a culturas estranhas e com um sentido apuradíssimo e polido de estilo, como o Japão, há um aumento desse factor.
A importância da obra de Seto está no facto de que estas histórias, reunidas nesta antologia providencial (o autor morreu durante a sua produção), foram sendo publicadas na década de 1960 e 1970 num Brasil oprimido pela ditadura militar. Seto é um dekassegui, isto é, japonês-brasileiro, de 3ª geração e, como tal, estava perfeitamente enraizado no país em que nasceu, e que o levaria ao cultivo do modo de expressão da banda desenhada nos “gibis” locais, mas ao mesmo tempo bebia profusamente da sua cultura familiar. Parte dessa herança de emigrante foi deixada clara com um outro volume anteriormente editado na Devir, Lendas trazidas pelos imigrantes do Japão, em que se coleccionam contos ouvidos por Seto e por ele reescritos, acompanhados de ilustrações da mais variada índole (não é, porém, a mais bela das edições, pecando por várias frentes em termos de reprodução, paginação e gritante flutuação da qualidade dos desenhos de Seto). As histórias dos guerreiros japoneses (verdadeiros “jagunços” locais para os poderes feudais), que Seto criou para um punhado de editoras (mas sobretudo a Edrel, com a revista notoriamente intitulada Samurai, de onde a maioria destas 5 histórias foram reproduzidas) seguiam tramas enraizadas na história do Japão, na cultura dos samurais, daymios, shoguns e generais das conturbadas épocas pré-imperiais, mas serviam sempre de metáfora semi-velada das também conturbadas novelas político-sociais do país. Cada um dos textos de introdução às histórias individuais revela essas associações, por vezes claríssimas. O autor demonstra também as associações do ano em que foram produzidas e dos elementos empregues na história a alguns princípios simbólicos da cultura japonesa, sobretudo no que diz respeito à hierarquia ético-mágica das espadas dos guerreiros. O fetichismo militar mostra aqui a sua dimensão, de um modo acabado, mais do que nas próprias histórias, no molde das personagens, nas morais que por elas perpassam…
Um segundo ponto da sua importância está no facto de que as fontes de Seto são histórico-literárias e não provenientes do território da banda desenhada. Aquelas que viriam a ser, discutivelmente, as bandas desenhadas mais famosas destes temas, a saber, as do Lobo Solitário, de Koike e Kojima, e como é indicado nesta mesma antologia, surgiriam depois dos primeiros trabalhos de Seto. É verdade que com muito mais impacto mundial, e não limitado ao seu país, mas a correcção histórica é um dos objectivos deste volume. Dessa forma, é verdade que Seto pode ser visto como um precursor de um ou mais territórios: da mangá fora do Japão, da gekigá, etc. No entanto, estaremos correctos nessa apreciação? Contará essa produção quando fora do Japão, não podendo estabelecer um diálogo interno e directo com o território ao qual supostamente pertenceria? E conseguirá este mesmo gesto da Devir brasileira repor uma atenção maior à própria memória dos quadrinhos brasileiros ou a parte do diálogo que cabe a Seto, nesse panorama maior?
A verdade é que o papel de precursor que lhe querem atribuir, ainda que factualmente correcto e não desmerecido, fica um tanto ou quanto limitado pela efectiva conquista em termos estéticos conseguida. Decerto que a paginação e composição das pranchas de Seto é algo de inédito no panorama de então, no Brasil (e alhures); que as suas opções de figuração e de efeitos visuais, de planificação da acção, é extremamente inventivo tendo em conta o estado da arte da sua época. Todavia, o seu desenho (se bem que seja necessário explicar que as condições de produção não são idênticas em todas as histórias, e que em muitos casos é fruto de trabalho em colaboração) sofre de alguma inconstância, e até mesmo de um fôlego de expressão própria. O problema não está em “não ser igual” a um qualquer modelo que lhe seja exterior – comparações externas, cotejamento de uma obra a partir de outras que possam estar no nosso horizonte de expectativas e associações mais com as quais não haja um relacionamento directo, seria ridículo. O problema está mesmo nas promessas que se desenham no seu interior, na circunferência que parecem criar e que depois não cumpre… Independentemente das composições criativas, pouco preocupadas com uma regularidade fechada, mas mais preocupadas com a transmissão de uma dinâmica veloz e de uma atenção cabal às personagens que se confrontam, alguns dos desenhos lembram aquele tipo de aproximação típica de bandas desenhadas baratas de gare, ou semi-pornográficas, em que não havia qualquer preocupação na manutenção de um estilo ou figuração, bastando a ideia de que era a mesma personagem de vinheta para vinheta. A correcção anatómica, sendo uma das premissas ou expectativas do desenho de Seto, também não é sempre respeitada, o que torna a sua legibilidade complicada. Os efeitos de design e efeitos gráficos são por vezes algo histriónicos, sem grande pertinência senão o do próprio efeito…
Quanto às histórias em si, o modo como transportam as informações históricas, os pequenos pormenores culturais, é também complicado ponderar sobre eles tendo em conta a exposição delas num momento em que se tornam diluídas com a profusão de traduções e novos materiais criados, já para não falar da acessibilidade à literatura e cinema (e outras criações) japoneses. Estamos em crer, porém, que beneficiaram de facto de um grande grau de originalidade na altura. A teia delicada da história da sua publicação (que passa pela censura), a biografia de Cláudio Seto, a sua relação com os autores e meios de produção, são outros elementos que estão presentes nos textos de apoio que acompanham esta edição, e iluminam parte dessas questões. Curiosamente, alguns dos títulos a que temos acesso sobre a história da banda desenhada no Brasil, entre os quais Literatura em quadrinhos no Brasil, de Cirne et al., não mencionam a obra de Seto, tratando-se evidentemente de uma daquelas peças órfãs da memória (curta, cega e surda) desta arte. É possível que este livro corrija essa situação, voltando a fazer parte dessa história amplificada.

1 comentário:

Anónimo disse...

Alô! Usei a imagem da capa emprestada para uma resenha que escreve no meu bobologue de quadrinhos

Gostei muitíssimo da sua leitura da obra e espero ter escrito algo parecido de forma mais concisa

Darei umas voltas por aqui para aprender contigo

Creio que possamos fazer trocas profícuas de quadrinhos luso-brasileiros

Se quiser trocar algumas figurinhas, o meu email é yuriccaldone@gmail.com