16 de outubro de 2008

How to look at pictures. Jorge Nesbitt (João Esteves de Oliveira)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 2.
Se víramos uma exposição “colectiva”, de “desenhos dos escritores”, voltamos a atenção para a individual de Jorge Nesbitt, para lá descobrir a “escrita de um desenhador”.
How to to look at pictures é uma exposição de vários trabalhos, os quais a um só tempo partilham características e divergem de natureza. O modo da sua presença é o das séries. A série deve ser entendida como um grupo de objectos individuais, capazes de uma autonomia entre si, mas cujo significado se fortalece na sua apresentação colectiva, uma vez que é nesse conjunto que se revelam as linhas de força com que se formam (não em termos de produção, mas no que diz respeito à sua imagem presente, àquilo que está permanentemente formando-se à nossa frente). Nesta exposição descobrem-se três séries: uma de paisagens com um círculo recortado, colorido, no qual foram colocadas palavras que se querem ver enquanto fórmulas (“assunto”, “significado”, “composição”, “tratamento natural”, “objecto”, tudo em inglês, complementado com uma gravura do arcanjo S. Miguel derrotando Satanás (a ensaísta vê S. Jorge e o dragão, e é capaz de ter razão, tendo acesso às condições de produção dos desenhos de Nesbitt, mas, não a tendo eu, e não encontrando nenhuma das pistas iconológicas para o identificar desse modo, mas sim identificando o pé sobre o pescoço do vencido, a balança da justiça e o pavilhão de Cristo, vejo S. Miguel), em que os rostos deles foram igualmente recortados com círculos, inscrevendo-se, respectivamente, as palavras “luz” e “trevas”; uma segunda série é composta de páginas arrancadas de livros (com apenas texto), sobre as quais Nesbitt elabora um desenho, de cores ténues, apagando o deixando entrever, a intensidades diferentes, o texto original: por vezes nota-se o título, noutras uma expressão, noutras ainda todo o texto, ainda que sob uma camada translúcida de cor; uma última, de seis gravuras de paisagens (holandesas, precisa-se no catálogo), sobre as quais se desenharam, com uma exactidão minuciosa, e num levíssimo azul que, ao mesmo tempo, destoa e se disfarça do cinzento da gravura original, a figura de aviões de caça alemães e um submarino: os primeiros como se tivessem caído nessa paisagens, o último, como se tivesse entrado calmamente na baía representada (a primeira e a terceira séries podem ser vistas na íntegra no site do autor, nos trabalhos de “2007/2008”, e aqui apresentamos um exemplo de lá retirado).
Como se entenderá, há uma constante utilização da expressão “desenho sobre”, uma vez que Nesbitt se apropria de páginas existentes de livros, com gravuras, reproduções de pinturas, desenhos, e agora também manchas de texto, para sobre eles exercer um gesto novo de inscrição. Aliás, a importância desse gesto torna-se clara quando lemos o sub-título (ou será título? ou uma outra espécie de determinação, de exactidão?) do seu blog: “trabalhos s/ papel”. “Sobre” papel. Aquilo que pareceria uma mera descrição técnica, de catalogação museográfica, passa a ser visto como ontologia da própria arte de Jorge Nesbitt. O suporte, o fundo, é a marca de existência dos seus desenhos. Também se poderia ler o “s/” como “sem” [tal qual como em “s/título”, “sem título”, constante do seu trabalho, igualmente; e não será por acaso que a capa do catálogo, apesar do título, não revela qualquer picture, qualquer imagem]: o desenho anula o papel, a nova imagem anula a imagem anterior, a imagem que agora se inscreve faz desaparecer aquela que antes habitava o papel. Ou, ainda um terceiro contrário, faz destacar os elementos que lá estavam de um modo novo.
Algumas das estratégias, senão o contínuo do aproveitamento de gravuras de livros, recordarão a obra dos irmãos Chapman, Insult to Injury ou If Hitler Had Been a Hippy How Happy Would We Be, em que estes desfiguraram, respectivamente, gravuras autênticas de Goya e aguarelas de Adolf Hitler. Mas ao passo que o uso dessas obras de arte originais (mesmo no caso de Hitler a palavra é correcta, e o facto de as gravuras de Goya serem múltiplos não altera a questão, dado o peso histórico da convergência entre “reprodução” e “original” nesse caso), da parte dos Chapman, se reveste de um “shock value” muito definido (ainda que possa não ser nem defensável nem, no fundo muito interessante), a Nesbitt parece importar antes a fundação de um possível, um virtual encontro – que pode ser meramente fortuito, através da acessibilidade circunstancial e fácil destas reproduções utilizadas – para criar um pequeno diálogo muito devedor ao humor, à história da arte desarrumada, e a uma constante promessa de narrativa. O adjectivo “pequeno” não serve de menosprezo nem se distanciamento em relação a quaisquer outros gestos. É apenas a instauração de um circunscrito movimento, que requer de nós uma atenção especial, para que não percamos o seu valor. Para assegurar esse humor para com a história da arte, vejam-se no site os trabalhos de 2005/2006, em que, quando surgem, criaturas assumem proporções e formas corpos assustadoras e contrastantes com o resto da composição, mas cujos olhos à personagem de desenho animado ou de banda desenhada infantil coloca outros termos na mesa, precisamente do tal diálogo ainda por fazer, e não uma “destruição” valorativa e ahistórica da obra anterior.
Outra estratégia, na série que não surge no site, mas de aqui deixamos duas imagens, é similar, até certo ponto, mas logo com uma divergência forte, do trabalho de Tom Phillips, A Humument, de que já falámos. A Humument é, para explicar rapidamente, um livro sobre cujas páginas Phillips elabora desenhos, mais ou menos abstractos, deixando porém visíveis alguns corpúsculos organizados de texto, aos quais dá o nome de “rios”, e através dos quais é possível ler uma “outra história” (perfeitamente legível, apesar de tudo, e que conheceu várias versões). O catálogo da exposição de Nesbitt tem um texto de Maria João Mayer Branco, no qual se fala de “uma natureza contínua, como se chegasse de outro lado e se prolongasse num fluxo permanentemente inscrito na página fixa” a propósito destes desenhos. Ora Phillips e Nesbitt, se cada qual com um gesto diferente, cobrem o que está em baixo não para simplesmente impor o que está em cima, mas para permitir que o que estava ainda mais em baixo viesse ao de cima, e que se prolongasse e dialogasse com a nova camada “de cima”. Há uma relação entre o desenho que Nesbitt inscreve sobre a página e o texto que ele apaga com esse desenho, com a excepção de uma ou uma mão-cheia de palavras. Mas ao passo que Phillips fazia, através dos seus “rios”, uma nova ligação ou recombinação da matéria verbal, associações possíveis no interior do texto dado, isto é, um verdadeiro e claro novo texto verbal, Nesbitt opera antes um destaque desse mesmo material para que elas ganhem a valência de um título, por assim dizer. As relações são, as mais das vezes, entre a intersecção e a interdependência, isto é, em que o sentido da imagem não cobre totalmente o que está previsto na palavra, mas não procura um choque ou contradição total: o jogo da “luz e trevas” da gravura de S. Miguel e Satanás, ou um retrato de um jovem Picasso com as palavras “a hero, of his kind” são as de sinal mais óbvio, mas outras há que desregulam ligeiramente essas expectativas e que permitem que a nossa faculdade de busca de sentido elabore movimentos mais complexos.
Não me parece que Jorge Nesbitt procure disfarçar as intervenções. É como se desejasse que alguma inércia de clareza permitisse um outro tipo de transporte. As gravuras que ditam as características da arte (ou melhor, de uma classe de arte, precisamente “clássica”) recuperam essa nitidez mas no interior do comentário humorístico em relação à História da Arte. Nesbitt não nega essa relação, votando-a como invisível, mas também não a alteia enquanto território inalcançável pelos seus (novos, no curso da História) gestos: é como se aceitasse o jogo da mimese das figuras, como se este continuasse a operar e, até, de um modo mais vívido ainda. Nesbitt “esconde”, é certo, como, todos diferentemente, os Chapman, Tom Phillips, Baldessari, João César Monteiro, Christo, isto é, de modos operatórios diferentes mas num mesmo propósito: “dar a ver de novo”, “apagar para escrever”.
O central, como é claro, é a relação entre a escrita e o desenho. A ensaísta identifica-o igualmente, aproximando-se das preocupações e crises da ilustração, mas apenas, parece-me, identificando um dos lados da questão. Ainda sob a ideia da identificação da gravura icónico-religiosa como sendo de S. Jorge com o dragão, Mayer Branco fala de um “São Jorge Nesbitt... apresentando de modo único a afinidade entre a palavra e a imagem: ambas são véu, superfície, aparência que, escondendo, dá a ver – e dá a ver mais”, precisamente como víramos obliquamente a propósito dos “desenhos de escritores” e em relação a Nesbitt.
De facto, podemos encontrar uma película muito fina, translúcida, entre escrita e desenho. Essa película permite que se adivinhem as formas de um lado e do outro, permitindo assim uma que outra aproximação. Mas separa duas correntes de ar, contraditórias, cada uma soprando do seu lado (a divisão disciplinar, corrente). Quando se rompe, impõe-se um turbilhão, uma mistura. Nesbitt tenta romper e, nalguns momentos, fá-lo. Já o havíamos citado, a tradição da caligrafia asiática lida com mestria essas correntes soltas. No ocidente, é mais raro, mas vamo-los anotando.
Todavia, porque apenas ver esse lado da questão? A complicada etimologia da ilustração (não só da palavra, mas do território mesmo) permite encontrarmos duas dinâmicas opostas: 1. um movimento de cima para baixo: iluminar, lustre, incidir luz sobre; 2. de baixo para cima: trazer luz a (como se de um fundo de poço se tratasse, iluminar “por trás”). Assim, porque não entender Nesbitt não enquanto o Arcanjo para quem a ordem e a separação e a pureza são da mais absoluta importância - a clássica identificação entre o Belo, o Bem, o Verdadeiro - mas sim enquanto Satã ou o Dragão? – representando as trevas que assombram mas permitem a confusão, a aliança, a emergência e a amálgama, a ambivalência da modernidade...
É que podemos sempre inverter as relações. Na verdade, a disjunção é maior no desenho do que na escrita. Ao contrário do que pareceria a uma primeira abordagem - por o desenho ser “universal”, cuja “semelhança” é nítida, cujas formas são coincidentes com as do mundo, e por ser a escrita “convencional”, “um acordo”, um “artificialismo que separa” –, é a escrita afinal aquela que transporta a promessa de que pode ser tornada nossa, através da sua compreensão e domínio: aprender a ler, aprender a escrever, dilui a magia de uma escrita, sempre estranha ao início, para que se tornem num veículo utilizado por nós. O desenho, não: ele convida-nos a aproximarmo-nos dele, quase em intimidade, para melhor nos repelir. O desenho pertence sempre ao seu autor, e nunca a nós mesmos. Aprende-se um poema de cor (de “coração”), mas não um desenho. Pode-se memorizá-lo, mas não colocá-lo sob a pulsação humana e repeti-lo, tão vivo como quando lido.
E é no intervalo dessas dúvidas que os autores capazes de identificar o espaço intervalar e com a força suficiente para não apenas se expressarem dele e nele mas também para deixar formas que atestem essa identificação, compreensão e criação, que nos permitem, também, aperceber-nos das fronteiras ruindo. Mesmo que breve e levemente.
Através destes trabalhos de Nesbitt, nos quais ele escreve um sentido com as imagens e que nos retorna à escrita – à capacidade de as tornar nossas (enquanto gesto, acesso) - uma das respostas a How to look at pictures é: “lendo-as”.

Nota: agradecimento a Jorge Nesbitt (e a galeria João Esteves de Oliveira), pela oferta do catálogo.

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