30 de agosto de 2008

Robert Crumb e Hans Ulrich Obrist (Verlag der Buchhandlung Walther König)

Como já havia exposto num outro artigo, a palavra entrevistar significa, num seu sentido mais profundo e ancorado na etimologia, “encontrar-se directamente com alguém”. O seu sentido jornalístico e mais básico de “uma série de perguntas e respostas” é muito recente e as mais das vezes reduz-se a uma pobre oportunidade para que se diga um pouco mais do mesmo... Este livro faz parte de uma colecção intitulada The Conversation Series, cada volume dando conta precisamente do encontro e conversa entre o influente Hans Ulrich Obrist (no mundo das artes visuais) e um grupo muito específico de artistas e autores, que compreende desde nomes de uma longa carreira como Gilbert & George até novos sucessos como Olafur Eliasson, arquitectos da inefável Zaha Hadid ao anfractuoso Rem Koolhaas... Esperar-se-ia, portanto, algo que servisse de um complemento profundo a outras entrevistas feitas a Crumb e facilmente adquiríveis, desde o volume antológico Conversations (UP Mississippi) ao volume da The Comics Journal Library e até mesmo o The R. Crumb Handbook, que serve de uma breve e primeira biografia, cheias de imagens (da qual é retirada a segunda, em baixo, apesar de copiada da net) que corroboram as palavras apresentadas. Não é, porém, o que acontece.
Da parte de Obrist, esperava uma maior preparação para a entrevista ou, em oposição a isso, mesmo que revelasse um ódio à banda desenhada, um organizado programa de pensamento com o qual confrontaria Crumb, em questões profundas. Não acontece.
Da parte de Crumb, esperava que lhe fosse tornado possível o abrir-se ao mundo de um modo mais descontraído, em que dialogasse seriamente com experiências diferentes das dele, ou que nos fosse permitido auscultar domínio menos conhecidos. Não acontece.
Crumb é muito limitado nalgumas visões que tem, sobre o papel do museu na sociedade contemporânea, sobre a evolução da música e a sua relação para com os públicos, meios de produção e distribuição, sobre determinadas considerações demasiado generalistas que faz para com os discursos em torno da reflexão secundária (isto é, a crítica e a teoria), sobre determinados artistas, como a consideração, sem que o determine e explique, de Bosch e Bruegel como “pintores populares” (não é que não o sejam, mas o uso da expressão na contemporaneidade pode levar a malentendidos e a comparações demasiado fáceis, se bem que ela tenha sido feita de modo bombástico e persistente pelo crítico Robert Hughes, que chamou precisamente Crumb do “Bruegel dos tempos modernos”), e é até mesmo demasiado distante para com a produção da banda desenhada contemporânea (com a excepção do trabalho da sua filha Sophie, provando que o amor de pai é necessária e fortemente faccioso). Sem dúvida que se poderá dizer que conquistou essa posição e que tem direito a viver nesse desprezo para com o trânsito do mundo quotidiano. Sem dúvida. Todavia, isso não faz dele mais interessante como potencial pensador. Um artista que é capaz, de uma breve cena que testemunhou nas ruas de Nova Iorque, transformá-la na solução de uma encomenda – uma capa para a New Yorker – e de uma maneira assombrosa que mistura a justiça social, a mordaz eloquência, e uma capacidade de composição e traço, como testemunhamos nesta imagem, só pode ser um artista de génio (e aqui, sim, um génio aproximável ao do Brugel dos Provérbios neerlandeses), no seu mais profundo sentido: isso não significa, porém, que essa dimensão se espelhe na sua capacidade de reflexão expressa verbalmente. Bem pelo contrário, em muitos aspectos Crumb lembra Kracauer e outros detractores das “novas” maneiras de arte e maneiras de fazer arte como sendo valorativamente inferiores às “passadas”.
A sua presença, pautada mas constante nos últimos anos, nos museus, poderia ter deslocado a questão para um território muito interessante, premente e crítico. Isso também acaba por não se desenvolver nessa direcção. Como diz o próprio artista, o que mais o move “não é a arte original, mas o livro impresso”. É claro que isto faz parte igualmente da estratégia de auto-derisão famosa em Crumb e que provavelmente aumenta quanto mais espaço vai conquistando no circuito (para não dizer mercado, veja-se o livro recente editado na Taschen) das ditas “artes visuais” ou “nobres”. O próprio facto de estar inserido nesta ronda promovida por Obrist acentua esse sentido. Crumb não está à vontade, e parece querer contrapor-se a ele de um modo menos feliz.
Hans Ulrich Obrist é um homem desse circuito, e pelas perguntas relativas ao mundo da banda desenhada percebe-se que não há a segurança e conhecimento deste território em particular que tornariam o exame a Crumb mais premente. Mas aqui também as atitudes de Crumb não ajudam. Por exemplo, a dado momento compara-se a Carl Barks no sentido em que ambos são artistas da banda desenhada que encontraram um bom equilíbrio entre o domínio visual e o da escrita, o de contar uma boa história e promover um belo desenho. Não se engana, Crumb. Para dar exemplos de excelentes escritores mas de uma arte menos entusiástica por direito próprio ou artistas magníficos com menores poderes narrativos dá os exemplos, respectivos, de Charles Schulz e de Harold Foster. Continuemos a aceitar. Mas quando diz que a Art Spiegelman o mais importante é a história, não podemos perguntar-nos a razão do autor reduzir a atenção, tendo trabalhado com ele, apenas a Maus, que cairá nessa categoria, e colocar de lado todas as outras experiências de Spiegelman, nitidamente entregues muito mais ao domínio visual da banda desenhada e até mesmo às suas experimentações formais específicas.
São muitas as questões que ficaram por desenvolver ou explorar pelos dois, e muitas outras as que as afirmações de ambos suscitam. É como se ocorresse aqui, de certa forma, o exacto inverso da ideia de entrevista. Um desencontro.

25 de agosto de 2008

Étude du Cahier Bleu d’André Juillard. Une approche narratologique de la bande dessinée. Éric Lavanchy (Academia Bruylant)

Tal qual como o título afirma, este livro apresenta uma abordagem narratológica de um livro de André Juillard, o primeiro título que este publicou sozinho, Le cahier bleu. O estudo em si é muito agudo e exaustivo, completando os passos que prometeu seguir, quer nos seus frutos precisos quer na demonstração de que este é um modelo de análise pertinente, se não sobre toda a produção de banda desenhada – já lá iremos – pelo menos na banda desenhada que segue os modelos vigentes da narrativa.
Todavia, a leitura atenta dos seus capítulos teóricos – a primeira parte do livro, “uma narratologia adaptada à banda desenhada” – obriga-nos a ponderar toda uma série de questões que, se até determinado momento acreditáramos serem certas, com a apresentação clara, bem fundamentada e com uma sólida ainda que restrita bibliografia, de Lavanchy, são colocadas de novo para chegar a ideias diferentes. Quer dizer, é precisamente graças à clareza e nitidez com que Lavanchy apresenta as suas ideias, adaptações e fundamentações, que argumentos contrários se tornam igualmente nítidos e claros. Os problemas levantados são muitos e apenas num diálogo ponto-por-ponto seria possível apresentar as teses, as antíteses e uma possível resposta mais satisfatória (mas, como os bons problemas, jamais final). É impossível apresentarmo-los a todos, mas indicaremos tratarem-se de temas como o mito do “autor completo”, o não tornar clara a distinção entre a dimensão textual (que entenderei como a presença de material verbal: falas, legendas, etc.) e a disposição textual (a instauração de um regime de relações entre as imagens que permitem a emergência das categorias espácio-temporais, de causalidade, etc.), a busca de um essencialismo na banda desenhada (“isto sõ é possível na bd”) que seria desmontado com um simples contra-exemplo, uma redução das outras artes a modos únicos, falhando em ver as múltiplas dimensões de cada arte (a fotografia não é sempre só um “isto foi” barthesiano), a mescla entre as condições de produção e a assunção do texto, entre outros aspectos relativos a assuntos mais complicados como por exemplo a crença da existência de “música extradiegética” no cinema, e a sua comparação com a banda desenhada.
Tentemos, por isso, centrarmo-nos num foco. Um primeiro patamar de problemas está no facto de que não é claro que a metodologia de Lavanchy se veja como um instrumento limitado a determinado tipo de produção de banda desenhada. A obra de arte institui sempre as suas próprias regras de crítica e muitas vezes os problemas de determinadas teorias críticas está no próprio facto de serem teorias, isto é, são do geral onde o acto crítico deve ser do particular: há instrumentos, atitudes, princípios que nascem no seio de um determinado tipo de produção que pode não funcionar do mesmo modo noutra produção de natureza diferente. Vejamos apenas um exemplo, relativamente conhecido. E. M. Forster, nos seus famosos Aspects of the Novel, de 1927, instituiu uma oposição entre personagens “redondas” e personagens “planas”, sendo as primeiras aquelas que revelarão, no decurso da diegese, algum tipo de densidade e de desenvolvimento psicológicos (em maior ou menor grau), e as segundas aquelas que apenas preenchem um reduzido papel de estereótipo. Para explicar de um modo bruto, as primeiras revelam ter personalidade, as segundas não. Por um lado, e como se vê pelo título do livro de Forster, entender-se-á imediatamente que o seu alcance (e a aplicação por ele feita) é sobre o romance, e não sobre todo e qualquer género literário ou narrativo (para, aqui, podermos incluir outras artes narrativas como o cinema, o teatro, e a banda desenhada). Por exemplo, não fará nenhum sentido querer aplicar esta dicotomia nas narrativas medievais, ou nos contos populares, já que a riqueza de muitas personagens reside precisamente na sua mínima psicologização e total preenchimento através das suas acções. Por outro, esse alcance diz respeito ao romance moderno, do tempo do próprio Forster, romance o qual vinha criando complexidades cada vez maiores no campo da psicologia das personagens (e à qual o advento da disciplina de Freud não foi alheio): de Goethe a Flaubert, de Gogol a Proust, de Dostoevsky a Musil, de Henry James a Joyce. Porém, se atentarmos à literatura que se seguiria a essa, e colocarmos Kafka, algumas personagens de Robert Walser ou de Borges, ou os “heróis” de Bret Easton Ellis no centro das atenções, notaremos como é a própria planeza dessas personagens a sua profunda e real condição. Não é que a teoria de Forster esteja errada (nem ele a aplicaria desse modo, decerto); tão-somente ela não é universalmente aplicada.
Lavanchy faz uma distinção operadora convincente entre um narrador-mostrador, que será aquela instância que organiza toda a informação (inclusive a visual) que nos é dada no texto de banda desenhada, e um narrador escritural, que é aquela instância que se expressa pela narração verbal sobreposta à visual: pode ser encontrada desde as mais simples legendas (“no dia seguinte...”) até aos próprios os pensamentos de uma personagem ou o texto de um diário (como é o caso do diário de Victor, o “caderno azul” do livro de Juillard que opera a transformação da história). Nenhuma destas instâncias, naturalmente, deve ser confundida com o autor, isto é, a pessoa real que criou a obra; tratam-se de instrumentos abstractos e analíticos. E eles imbricam-se um no outro para constituir um nível compósito de narração, complexo e típico da banda desenhada (mas que ocorre também no cinema, por exemplo).
Enfim, e seja como for, a escolha de um livro como o de Juillard é de facto judiciosa para a aplicação dos instrumentos desenvolvidos por Genette, como a voz e o modo, e o recurso a conceitos desenvolvidos no estudo narrativo do cinema, como a monstração de André Gaudreault e a ocularização e a auricularização de François Jost não são mais do que naturais consequências do primeiro estudo, narratológico, aplicado a uma outra área artística que partilha com a banda desenhada suficientes termos para essa mesma aproximação.
Mas já veremos como o problema se agrava nestas considerações e valorização do Le cahier bleu de Juillard. Este é um álbum que conta uma história em três capítulos, e faremos aqui um breve resumo. O primeiro mostra Louise, uma jovem mulher, a ser abordada por um homem, Armand, que a vira nua pela janela de casa, quando o metro parara (o prédio dela fica perto de uma plataforma), começando eles uma brevíssima relação (da qual nada testemunhamos), passando ela a encontrar-se com um outro homem, Victor, terminando esse capítulo com a recepção de um caderno azul. No segundo capítulo, acompanhamos com Louise a leitura desse caderno, que não é mais do que o diário de Victor, e com ele aprendemos, recuperando passos do capítulo anterior, que Victor também vira Louise nua, se apaixonara e começara a seguir Louise, planeando aproximar-se dela, e conseguindo-o; o capítulo termina com Louise triste em descobrir esta trama. (entretanto, o leitor vê imagens que parecem repetidas, mas com pequenas inflexões, e que têm a ver com alterações de focalização, no primeiro capítulo da parte do narrador externo, no segundo, confundindo-se ou aproximando-se da focalização do próprio Victor: as imagens que espalho neste artigo dão conta disso, estando emparelhadas as sequências relacionadas entre os dois capítulos; estranhamente, Lavanchy cita Groensteen em vários momentos, mas nunca fala do entrançamento ou tressage, conceito que opera aqui sem quaisquer dúvidas). No último capítulo, contado de uma forma relativamente abrupta, descobrimos que foi Armand quem entregou o diário de Victor, de quem era amigo, a Louise, que os dois homens discutiram e trocaram umas agressões; mais tarde Armand seria descoberto morto, sendo Victor o primeiro suspeito, mas uma testemunha, Elena, que dormira com Armand e logo depois com Victor, salva este último, que não é culpado (não saberemos quem é o culpado); Victor é solto, Louise tenta alcançá-lo para perdoá-lo, mas encontrando-o com Elena, desiste. É óbvio que o resumo não explica muito, mas o que parece ser um curioso dispositivo de revisitação narrativa entre o primeiro e o segundo capítulos, acaba por se reduzir a um truque que não traz qualquer dimensão à narrativa global.
Se voltarmos atrás e resolvermos aplicar (afinal) a dicotomia de Forster, seríamos obrigados a dizer que apenas Victor poderá ser considerada uma personagem redonda, uma vez que se revelam as camadas e as titubeações (o arrependimento, a tristeza e alienação profunda para com o rompimento de Louise, bem diferente do orgulho de macho ferido de Armand)... Louise, por seu lado, por mais tentados que estejamos pela cobertura que o livro faz dela – em termos imagéticos -, é no fundo uma personagem plana. Mais, ela é tratada pelo mega-narrador (a mescla entre os dois narradores de Lavanchy, recuperando um termo de Gaudreault) como um objecto de desejo: o voyeurismo de Armand e Victor é partilhado por nós mesmos: somos obrigados a isso pela apresentação visual do corpo dela, desnudado bastas vezes, mesmo que em companhia de Victor, vestido. Mais, devemos acrescentar a isso um tratamento gráfico relativamente banal pela parte de Juillard, de resto, em consonância com o seu trabalho banal. Vejamos: se existe uma débil desculpa de que o desenho de Juillard faça rostos parecidos, de curvas amplas, quase de rapaz, modulares, entre Louise e a sua irmã Pauline por, óbvio, serem irmãs (Pauline distingue-se pelo seu cabelo à Cavaleiro Andante e Louise pelo corte à rapaz, espigado, misto de modernidade dos anos 80 e “libertação feminina” – leia-se “mulheres que mais rapidamente vão para a cama connosco”), o facto de uma terceira personagem feminina, Elena, partilhar os mesmos traços, leva-nos a uma verdadeira reconsideração do trabalho de Juillard: será ele mesmo capaz de compor uma verdadeira e multifacetada comédia humana ou manter-se-á apenas competente em efeitos de dramatismo?
O próprio Lavanchy parece dar-nos pistas para a segunda opção. A dado momento, depois de citar Juillard que disse se ter baseado em parte no romance La maison du rendez-vous de Robber-Grillet, Lavanchy escreve o seguinte: “Contrariamente ao livro de Robbe-Grillet, no qual o leitor, prisioneiro das versões subjectivas das diferentes personagens, não pode reconstruir aquilo que realmente se passou, Le cahier bleu é constituído por um conjunto de testemunhos convergentes” (pg. 22, meus sublinhados). Esta frase está num parágrafo de apresentação intitulado “uma obra ambiciosa”, mas não compreendo de todo onde está a ambição e orgulho em se querer comparar com as experiências do Nouveau Roman, para logo dizer que o seu trabalho é aquém dessas mesmas experiências. Um pouco mais à frente, explicita-se, dizendo que se Juillard se baseou num exemplo do Nouveau Roman, Le cahier bleu não se trata de “um exercício meramente formal. A proeza narrativa não é gratuita,, está ao serviço da história, e permite dar às personagens de Louise e Victor uma densidade a que a banda desenhada tradicional não nos habituou” (pg. 24); mais à frente, acrescenta: ela permite precisamente a esta história de atingir toda a sua amplitude, e às personagens de existirem plenamente” (26; meus sublinhados). Deverei entender que há gratuidade no exemplo de Robber-Grillet? Se bem que não seja esse o sentido directo das palavras de Lavanchy, seguramente, parece-me no entanto existir aqui uma crença ainda na necessidade de uma teleologia clara, uma vontade em querer-se ser objectivo em relação a uma realidade que “realmente se passou”, fazendo portanto parte dos modelos narrativos clássicos e ainda hoje vigentes em franca maioria na banda desenhada (e outros modos narrativos, claro). O leitor de Robber-Grillet está tão prisioneiro a esse romance (“exercício meramente formal”) como o de Juillard ao deste livro: só tem acesso ao material textual que lhe é oferecido. No entanto, a diluição de uma verdade, ou de um fim é antes um valor de força para com a obra, em consonância com uma certa angústia mas ao mesmo tempo consciência da modernidade (ou da pós-modernidade, se preferirem). Juillard, e pelos vistos Lavanchy, ainda crêem ser-se possível chegar a uma verdade dominante (e, curiosamente, o mistério da morte de Armand não é resolvido, mas esse enigma não se faz sentir sobre o resto da trama de Le cahier bleu).
O problema reside no facto de que bastas vezes Lavanchy fala dessa “banda desenhada tradicional”, mas jamais explicando do que se trata. Mais à frente falarei de Ann Miller, do seu Reading Bande Dessinée, no qual a autora contrapõe toda uma série de outros exemplos, de obras e autores, tentando inscrever a obra de Juillard num contínuo e numa tradição, mas esta nota apenas serve para contrabalançar a posição de Lavanchy que apresenta este seu livro como algo de inédito contra um fundo que não torna nítido. A pergunta que nos obriga a fazer é, qual banda desenhada tradicional? (à frente, bdt) Toda a primeira parte, teórica, utiliza apenas, e é importante frisá-lo, exemplos d’As Aventuras de Tintin. Há toda uma crença em que Hergé criou os blocos fundamentais da banda desenhada narrativa francesa moderna (se bem que estes três últimos atributos sejam as mais das vezes esquecidos) e, por isso, é natural que a essa perspectiva sirva de “grau zero”. Não contestemos totalmente essa posição, uma vez que permite um diálogo contínuo e interessante e pode de facto servir como modelo de análise – tanto como Eça de Queiroz ou os sonetos de Camões servem para usos escolares –, mas aclaremos a necessidade de temperar esse universalismo que parece aí prometido. Pelo modo como Lavanchy usa esse major exemplum, se bem que seja a matriz d(ess)a bdt, não me parece que seja o fundo contra o qual coloca cahier. A resposta não é dada de modo algum pelo autor, e não é difícil apercebermo-nos onde reside o problema. Afinal de contas, Juillard contribui em muito para essa bdt, mas mesmo no seu seio mais profundo, com as obras de Christin e Mézières, Derib, Cosey, Auclair, Godard e Ribera, Herman, Servais, Bourgeon, houve espaço para que se criassem personagens com densidade e com uma existência plena, para reempregar as palavras de Lavanchy. E se dermos um passo ao lado dessa centralidade, para olharmos as obras de Tardi, Montpellier, Baudoin, Christin e Bilal, Forest, Comès (o de L'ombre du corbeau), iremos mais longe. E afinal de contas, mesmo que olhemos para alguns autores de L’Association (David B., Marjane Satrapi, Joann Sfar, Lewis Trondheim, por exemplo) ainda estaremos no interior de um modelo clássico no que diz respeito à narrativa e à dimensão da imagem na sua relação ontológica com a realidade (em graus diversos, naturalmente). Lavanchy não é claro, e como não explica em que medida essa “dimensão psicológica” de Juillard é diferente da bdt, ficamos sem saber qual o seu grau de valorização possível. Se Lavanchy o está a contrapor a Bob Morane, Luc Orient ou Titeuf, não se enganará no grau mas erra em termos de pertinência da comparação.
Em vários momentos Lavanchy recupera as palavras de Juillard em como este não deseja ser visto como um autor fechado num nicho autoral (de “romances históricos”, como ditado pelas suas séries em colaboração Les 7 vies de l’épervier ou Masquerouge), e que tentou Le cahier bleu como a sua tentativa de “escrever” também. Todos exultam. Seguir-se-iam outras experiências, inclusive uma sequela a este livro, com Après la pluie, e ainda se deve mencionar Le long voyage de Léna, com Pierre Christin, que lhe incute necessariamente uma dimensão política e narrativa mais vincada, seguramente. Mas, sinceramente, é preciso muito boa vontade para querer encontrar aqui algo mais do que uma interessante maquinaria narrativa entre um capítulo e outro e querer, daí, tornar todo o livro como uma obra superior. Não o é. Essa dimensão psicológica de Le cahier bleu é um truque de magia ditado pelo exercício, “puramente formal”, entre o primeiro e o segundo capítulo. Louise é, mais uma vez, uma “mulher de papel”, sem dimensão para além da sua superfície ero-óptica. Um trompe-l’œil.
Permitam-me uma nota suplementar, e corrigida. Eu havia aqui feito um aproximação do livro de Lavanchy com um estudo idêntico integrado num projecto maior de Ann Miller, Reading Bande Dessinée, que aqui discutimos brevemente. Nesse texto alertava para a coincidência de autores citados e imperativos no estudo da narratologia alargada, de Genette a Gaudreault e Jost. Uma vez que citava as datas de edição da tese de Lavanchy e do livro de Miller, e apesar dos meus alertas para o que desejava evitar, a autora entendeu que eu havia feito uma acusação de plágio. Na verdade, a rever o texto apercebi-me de não ter sido muito claro e de facto dar a entender um subentendido elíptico pouco feliz, indigno deste espaço. Assim sendo, reformulo esta parte, deixando em baixo o comentário de Ann Miller e a minha resposta. Ficam aqui as minhas sinceras desculpas de ter permitido esta situação, quando na verdade observo o livro de Miller com uma das melhores e mais completas introduções (se não já indo mais longe que isso...) aos estudos possíveis da banda desenhada. Estas desculpas não se dirigem somente à própria autora, que se sentiu lesada, Ann Miller, mas aos leitores do lerbd. Sinto-me envergonhado, e mais uma vez, as minhas desculpas.

17 de agosto de 2008

Le Grand Autre, Ludovic Debeurme (Cornélius)

Estou em crer que Ludovic Debeurme se encontra num caminho, raro de encontrar, que é aberto pelo próprio artista e com ele se confunde. Isto não tem nada a ver com o que comummente se chama de “originalidade”, se bem que essa palavra tenha sido desprovida do seu verdadeiro valor e peso, para passar a alimentar as mais superficiais impressões do momento e entusiasmos fugazes. O que quero dizer é que Debeurme tem vindo a explorar, com cada livro seu, um afastamento progressivo das narrativas naturalistas (Lucille ainda pertencerá a esse território), para entrar num outro campo, cada vez mais onírico, se bem que Le Grand Autre instaure, no seio desse novo campo, uma narrativa organizada (ligeiramente diferente de Mes ailles d’homme).
Este livro segue a vida de Louis. Apeteceria dizer ver aqui o Bildungsroman, mas essa palavra parece dar conta de uma evolução que tem a ver com a maturidade e o crescimento em relação à sociedade em que o protagonista se inscreve, quando na verdade o que aqui ocorre é uma fuga e transmutação. Começamos com um adulto, que depois descobriremos ser Louis, olhando o mar e falando-nos de um pacto antigo. O resto da narrativa é uma longa analepse que dá conta dessa troca e das suas consequências. Louis é uma criança com uma prótese de perna que um dia mergulha fundo na água e quase morre, enleado nas algas. Uma estranha criatura, primeiro contacto com o maravilhoso, faz um pacto, libertando-o em troca dos olhos sãos de Louis pelos dela, que são capazes de “ver o interior”. Quando Louis emerge, está estrábico. Se não usar os olhos que lhe corrigem a vista, Louis vê algo de muito diferente da vigília dos demais: vê monstros, figuras terríveis, signos ocultos, como se a “razão” fosse afinal o sonho de uma visão clara que nos impedisse dessas camadas tenebrosas. Ao princípio, pensamos que todo o fantástico do livro ocorre somente através da percepção “outra” de Louis. Há casos em que Célia também parece confrontada com criaturas fantásticas, mas nada nos é indicado sobre a “realidade” desses eventos, no seio da narrativa. Só aos poucos se revela que as visões de Célia são “em sonho”, e as de Louis “verdadeiras”, lançando-nos então para o território do maravilhoso. (veja-se esta imagem de Louis no oftalmologista, interpretando, visualmente, o que vê nas letras)
Por várias razões, Louis não é popular entre os colegas da escola. A única pessoa que parece aproximar-se dele é Célia, uma das miúdas góticas da escola. Célia tem uma sensibilidade profunda, que partilha afinidades com a de Louis e que a faz perceber uma verdade: Louis é o mais “gótico” de todos, não sendo uma questão de moda superficial, mas de uma funda entrega às trevas da razão dita acima. Louis acabará por se afastar do mundo “social” (estamos no primeiro terço do livro) para chegar “ao outro lado do espelho”.
Coleccionar, indicando, as fontes de uma obra não leva a lado nenhum a não ser talvez para demonstrar que o leitor (crítico ou não) as conhece e usa assim do seu tempo de antena para aferir conhecimentos. Mas a revelação das afinidades apenas ganha um valor mais substancial se se colocarem as duas obras, a “fonte” e a presente, num diálogo pertinente. A identificação de temas, tons, elementos, estratégias narrativas é relativamente fácil e clara neste livro de Debeurme. Há toda uma tradição sobre personagens crianças ou adultas que atravessam um qualquer limite para além do qual se ergue um outro país absolutamente diferente do seu, não em grau, mas em natureza. Uma das obras dessa tradição é As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Louis, tal como Lemuel Gulliver, depois de entrar na floresta associa-se sucessivamente com três reinos, o dos insectos, o dos pássaros e o dos ratos (se bem que com os últimos se mantêm uma certa tensão antagónica), visto por todos como uma espécie de monarca, de membro da família superno, protector extraordinário. Há aqui uma inversão em relação a Gulliver; pois se este era desejado por ser diferente, exótico, totalmente estranho e termo de comparação das sociedades que, por ele, entravam em choque (a Inglaterra contrastada com Laputa, Brobdingnag, Lilliput, etc.), Louis é visto como pertencente ao mesmo, ainda que diferenciado por esta ou aquela razão. O tema da visão alterar-se conforme o desejo é, então, uma constante. (aqui, Louis na glória de rei dos pássaros)
Aliás, poderíamos mesmo dizer que “visão” e “desejo” são as personagens oculta de Le Grand Autre. Algumas pistas para isso são explícitas, outra menos. Vejamos as primeiras. Um dos capítulos é intitulado “objet petit a”. Este é, como se sabe, um conceito do psicanalista Jacques Lacan. Nesse capítulo, observamos duas acções principais: Louis a quebrar a perna a um boneco (que se parece com um Super-homem ou um G.I. Joe) e depois a atirá-lo de uma falésia abaixo, e o aparecimento de Célia, a rapariga gótica. O conceito de Lacan diz respeito a um objecto de desejo que “faz falta”, ou “produz a falta”, uma falta ou falha que o sujeito deseja preencher e coloca assim em movimento o próprio movimento do desejo. Tudo isto é muito claro em Debeurme, ainda que tenha a pátina da aparente falta de lógica dos sonhos (de que falaremos adiante). Mesmo no fim desse episódio, quando uma gaivota “veste” a cabeça oca do boneco, que se havia separado, entendemos aí, mesmo que ligeiramente evasivo, um sentido ilustrativo das teorias psicanalíticas de Lacan.
Não obstante, é algo perigoso talvez seguir uma leitura de Le Grand Autre à luz dessas teorias – mesmo que na sua produção isso tenha sido decisivo. Seria uma aplicação redutora que não daria espaço ao intervalo de liberdade criado por toda a obra, intervalo que ganha um menor ou maior alcance conforme os casos, depois de se tornar independente do seu autor. E transformar-se-ia num exercício de psico-biografia aplicada à banda desenhada que só não nos interessa como nos parece votada ao fracasso desde logo. Fiquemos, então, pela simples menção de que esses temas lacanianos se mantêm nalguns momentos do livro (um outro episódio chama-se “Da comida como dificuldade de re-se-voir”, isto é, um trocadilho entre “reservar” e “ver-se de novo”; também poderíamos dizer ser derridaniano, talvez).
As aproximações possíveis no seio da banda desenhada seriam a dois autores norte-americanos, e até mesmo pelo estilo gráfico de Debeurme (contornos bem definidos das personagens, um equilíbrio significativo entre desenhos simples e vago e outros plenos de pormenor). Por um lado pensamos em Charles Burns, com Black Hole, mas ao passo que esta é uma alegoria em torno de epidemias e suas repercussões sociais (o HIV, como exemplo máximo), Le Grand Autre trata de algo muito mais pessoal, centrado em Louis. No entanto, esta aproximação é algo superficial... Um segundo termo de comparação será Like a Velvet Glove cast in Iron, de Daniel Clowes pelo seu carácter de invasão da lógica onírica num universo diegético aparentemente naturalista, empírico. Jamais afirmarei tratar-se de surrealismo, o que além de ser redutor é pura e simplesmente falso, mal aplicado. Falar-se-á de aspectos que parecem intrínsecos ao sonho, mas o sonho não é um sinónimo nem um exclusivo do surrealismo, o qual é um movimento muito específico da história da arte, com os seus mecanismos próprios e técnicas específicas, que não se verificam nestas duas obras de banda desenhada (aliás, poder-se-ia argumentar mesmo que as premissas do surrealismo dissipam-se no momento em que são integradas num projecto narrativo; vide Max Ernst e os seus romans-collage). Se algo próximo a essa ideia ocorre em Le Grand Autre, temos aqui então uma Traumgeschichte, isto é, uma história em que os elementos de um sonho invadem aqueles que seriam os do acto da vigília. Max Klinger, com A Luva, de 1881, foi um dos percursores deste tipo de aproximação das narrativas em imagens ao material onírico na idade moderna. O sonho revela velando, e nele há ainda a possibilidade de ver, ainda que o grau de verdade seja inalcançável, não é sequer pensável. E é essa integração e encobrimento-para-revelar que nos fará aproximar da questão da visão.
Paul Valéry, em Analecta, citado por Walter Benjamin em “Sobre alguns motivos em Baudelaire”, diz o seguinte: “Quando digo: estou a ver aquilo ali, isso não significa que tenha sido estabelecida uma equação entre mim e a coisa... mas no sonho está presente uma equação. As coisas que eu vejo vêem-me, tal como as vejo a elas”. Benjamin citara-o porque sabia que Valéry era um atento leitor de Baudelaire, em cujo famoso poema, "Correspondências" (em As Flores do Mal), a característica mais marcante do “bosque de símbolos” é o facto de ter a capacidade de lançar “íntimos olhares” sobre quem os atravessa.
Aqui encontramos modos mais interessantes de colocar o nosso pensamento em consonância com a respiração própria da obra. Mas há ainda uma outra contribuição possível dos lados da filosofia. Maurice Blanchot tem um pequeno texto, em L’Entretien Infini, chamado “Parler, ce n’est pas voir”. Estarei aqui a exercer uma violência tremenda em querer reduzir o profundíssimo pensamento de Blanchot numa mera fórmula qualquer, aplicável à interpretação do acto criativo de Debeurme, mas isso é feito crendo que há aqui uma possibilidade de aproximação, se bem que nunca final ou cabal.
Podemos a qualquer momento esquecer uma palavra. Mas esquecer uma palavra é revelar que se podem esquecer todas as palavras. A palavra surge assim como um perigo, a de vir a permitir a destruição de toda a memória. Mas porque é que há esse perigo? Porque palavra corta a ligação possível com as coisas, permitida pelo olhar, o qual aproxima tudo, por mais longe que esteja. O olhar é sempre uma aproximação. A palavra, afastamento. Mas é como se fosse um desvio do visível sem nos levar ao invisível. É um “fora” da ideia mesmo de visibilidade. Reforçando essa ideia do corte perpetrado pela palavra, precisa-se no texto de Blanchot que o acto de escrever não é tornar visível a palavra mas sim a de continuar a assegurar esse corte (e que se note as origens comuns entre escrita e a incisão cirúrgica, pela comum raiz do estilete). Isto é muito poderoso e levanta questões profundas que nos deveria fazer evitar respostas fáceis, como a fórmula empregue, sobre um escritor qualquer, de que “é muito visual”, por exemplo. No que diz respeito à banda desenhada, é um princípio de problemáticas muito complicadas: sendo a banda desenhada um espaço de encontro entre a visão e a palavra, torna-se, sob a égide de Blanchot, num espaço paradoxal por excelência.
Há uma relação directa permitida pela distância que se faz entre o objecto e o olhar, sendo essa mesma distância, sob a luz, sinal desse contacto. A palavra quer transcender isso, quer como alforriar o olhar das limitações do olhar e, ao fazê-lo, provoca a possibilidade de todas as perversões, trocas de palavras, jogos, e a instituição do erro. Mesmo na escuridão a ideia de luz mantêm-se vivace, logo, possível, logo ainda se está no domínio do olhar. Na palavra, estamos fora desse domínio. Na continuidade do seu texto, e passando por Heraclito, referindo aquilo que o filósofo antigo disse da palavra do oráculo, Blanchot cita como esta palavra não expõe nem esconde, indica, isto é, é também ela uma forma de escrita.
Falar não é ver. E desenhar, será uma forma de ver, de dar a ver, detornar visível, ou é antes uma forma de escrita neste sentido específico, de que é algo que fica “fora” da visibilidade? Não sou capaz de providenciar uma resposta cabal, nem sei se ela é possível (talvez, convido-vos a isso). Todavia, é como se fosse uma resposta tentativa aquilo que Debeurme ensaia neste livro, ainda que a coloque no interior e ao serviço de uma história de crescimento e redenção, de perdição interior (a herança dos olhos perscrutantes da visão “outra”) e salvação pelo desejo e o amor. É quando Louis assimila totalmente a sua capacidade especial da visão que se torna autónomo, forte, mesmo que o preço seja afastar-se da cidade dos humanos. E é quando ele abdica dela (pelo menos parcialmente, pois um outro aspecto de Le Grand Autre é que mesmo nas trocas absolutas e nos objectos perdidos, há sempre vestígios deixados atrás, que poderão ou não despontar a glórias passadas ou a toda a sua potencialidade) que ganha outras possibilidades de liberdade.
Nota: agradecimentos a Nuno Cruz pelo alento para procurar este livro.

12 de agosto de 2008

Hägar, o Horrendo. Dik Browne (Librimpress)

Este será um post brevíssimo, pois é mais fácil e pertinente procurar e falar o positivo que montar um discurso daquilo que não se aproxima de nós.
As leituras esparsas das tiras cómicas de Dik Browne, nas mais diversas plataformas, levaram sempre a uma impressão, vaga, de que as forças possíveis de criar nesse espaço estavam lá, em Hägar, mas jamais se desenvolviam magistralmente, fosse para dentro (como em Peanuts ou Calvin & Hobbes) fosse para fora (Mafalda ou Pogo), fosse ainda noutras direcções mais singulares (Red Meat ou The Perry Bible Fellowship). A sua edição organizada cronologicamente é um bom gesto, editorialmente falando, mas não redime essa impressão, afinal. Não a torna compreensão e distância, dois elementos necessários à crítica.
Limitar-me-ei a deixar duas imagens, uma literária e uma mais chã. Comecemos pela segunda. Uma antologia de tiras é como uma caixa de chocolates. Tal como a tira diária seria um pequeno “mimo”, tomada isoladamente, estas colecções são como caixas luxuosas, ofertadas ao degustar de uma só vez. Mas tal como existe uma diversidade assombrosa no tipo de cobertura, de recheio, de formas, de sofisticação de chocolates, ora encontramos as mais acabadas delícias, como Peanuts, ora nos deparamos as mais das vezes com coisas medíocres, isto é médias, como Hägar. Por vezes, podem calhar exemplos menos agradáveis mesmo (Cathy, Dilbert, Gardfield). Dik Browne não preenche, a meu ver, os grandes requisitos... sim, há o desvio pelos vikings, no que diz respeito a “ambiente”, e o estilo gráfico estar colado ao de Mort Walker pode não ser grave, já que a cultura é mesmo feita de diferenças e repetições, e é natural que o tipo de humor tente abarcar toda e quaisquer das suas espécies: humor de situação, de costumes, trocadilhos linguísticos, visuais, etc. Mas...
Quanto à imagem literária, vem de J. L. Borges (como escreve no prólogo a Os Conjurados, editado entre nos pela Difel): “Não há poeta, por medíocre que seja, que não tenha escrito o melhor verso da literatura, mas também os mais infelizes. A beleza não é privilégio de uns quantos nomes ilustres”.
Procurámos, a nosso ver, o “melhor verso” ou o “melhor chocolate”, pelo menos no que diz respeito ao ano de 1973, o primeiro ano de vida da tira de Browne. Pela sua gestão do tempo, a estruturação da acção, e a patetice, ei-la.
(Nota: agradecimento a Manuel Caldas, pelo envio do livro)

8 de agosto de 2008

Roberto. Baudoin (6 Pieds Sous terre)

Como sempre e em contínuo na obra de Baudoin, descobrir-se-á neste livro uma tensão permanente entre a diferença e a repetição, instalados num ritmo de avanço e recuo na matéria que investiga, a saber, a memória. E se a maioria dos livros de Baudoin incidem sobre a sua própria memória, ou as do seu sangue, há sempre espaço para, mesmo na ficção (Travesti) ou na reportagem (o livro presente), alcançar a memória do outro e trazê-la para o interior da sua, ou colocar-se a si mesmo no interior da investigação. Qualquer autor, seja qual for o seu território, tema, matéria, técnica, estará no centro da obra que nos oferta, sem dúvida. Mas as mais das vezes encontra-se por detrás dela, oculta-se nela. Baudoin, todavia, como poucos – mas não está sozinho – cria um corpo visível do lado de cá da obra, isto é, o lado que podemos ler e analisar.
Roberto é um pequeno livro que une, digamos, duas entrevistas, para fazer erigir um mesmo tema, muito contemporâneo na França, mas com grande relevância para Portugal também, a imigração e o racismo. Uma primeira parte ronda em torno da vida de Robert, filho de um imigrante italiano. Robert é um sexagenário, e este é o momento dele tomar distância da sua vida e sopesá-la, através da rememoração, enquanto Baudoin ali está para a recolher: Robert mergulha nas raízes da sua infância, nas mãos enormes do pai, no seu trajecto um ponto social acima da vida de mineiro, a mulher bailarina, o Maio de 68, as primeiras esculturas em metal, a vida independente da filha, que irá agora visitar a Paris, vindo dos subúrbios. As vinhetas que mostram a viagem de autocarro, talvez onde Robert e Baudoin se cruzaram, não mostram apenas a paisagem vista pelo vidro mas aquelas que flutuam na memória de Robert, tantas quanto as flutuações do rosto dele, no próprio movimento da sua memória, que o transporta e transfigura.
Atrás, percebemos, “há uns jovens que riem e falam alto”. Nós continuaremos a saber de Robert, mas num momento, e após um brevíssimo intervalo, encontramos o próprio Baudoin, “monsieur le dessinateur”, a conversar com três jovens dos subúrbios, - afinal os do autocarro - todos franceses, de pais franceses, mas com raízes mais longínquas e forasteiras, que provavelmente lhe doam um peso diferente: Samir, Farid, e Roberto, filho de portugueses. Seguem-se seis página, cinco das quais com uma estrutura absolutamente idêntica: três vinhetas, com as cabeças dos amigos lado a lado, cada um tomando a palavra a e completando a frase do outro, e ondulando por sobre os temas dos seus quotidianos, desde a pressão policial em tomá-los a todos como “voyous”, a vida entre a espada e a parede, muitas vezes entre a espada e a espada, a ilusão ou o desejo sincero em viver uma vida calma, de estudantes, com os seus amigos, a dita vida “normal”...
Todavia, isso não lhes cabe. Quase sem transição, há uma série de pranchas que se repetem. Poderemos pensar tratar-se de um erro de impressão (e talvez o seja mesmo!). Mas não nos surpreenderia que se tratasse de uma estratégia propositada de Baudoin, como retomar de uma palavra encerrada num ciclo, dito vicioso, mas sem que possamos identificar a razão de se ter tornado vicioso. Ou talvez seja uma forma de dar conta de uma aproximação paulatina e de um também titubeante afastamento, como se não se desejasse deixar marcas novas ao sair. Ou talvez seja um modo retórico de entrar no coração das trevas, progressivamente mais negras, e sair delas do mesmo modo, dissipando-as, defrontando a face positiva da vida dos três jovens, todos franceses, de pais franceses.
Ao longo do livro, há como que intervenções do narrador, excursos mínimos, que na verdade são o enquadramento e o húmus do qual desponta toda a narrativa. Baudoin tenta identificar os momentos em que uma pessoa diz, ao seu filho por exemplo, que “aquela pessoa não é como nós”. As condições dessa diferenciação podem ser várias, mas as mais das vezes relacionam-se com aspectos superficiais: cor da pele, nacionalidade, origem, classe social. Aproveitando a lembrança do Maio de 68, e falando dos episódios dos carros queimados nos subúrbios de Paris, Baudoin tenta perceber as diferenças que se vieram instalar entre o descontentamento desses tempos agora tão recuados e o que se tenta expressar hoje: a grande diferença é que, hoje, é proibido protestar. É proibido protestar porque já não se pode falar de opressão económica, de políticas desfavoráveis a uma verdadeira mobilidade social, da falta de planos inteligentes e cabais de integração. Está “fora de moda”. Se as pessoas vivem num determinado estado social, por mais miserável que seja, a culpa é delas mesmas. E assim surge o ódio de si mesmo, e nele estão as sementes da discórdia, do ódio, do racismo. Baudoin quer perceber as razões que levam uma pessoa a dizer “aquela pessoa não é como nós”, e Roberto é uma possível resposta, é a sua. E, como as melhores respostas aos verdadeiros problemas, não responde, mas abre o problema.

3 de agosto de 2008

El gabinete del Doctor Salgari. Santiago Valenzuela (Astiberri)

Este livro é pequeno e apresenta apenas 8 histórias (uma por cada personagem), todas elas contadas de quatro a oito pranchas, seguidas de uma, digamos, splash page ou poster. No entanto, a leitura não é rápida de modo algum. Estamos perante um tratado das várias estações da vida e comportamento humanos, das paixões que no movem e unem enquanto espécie, das unidades que nos compõem e sobrevivem, quer alterando-se na roupagem quer disfarçando-se em novas peles. Apesar de existirem estas oito personagens com as suas histórias particulares, elas parecem estar aí, actuando, em nosso nome colectivo e, estando todas sob o escrutínio – abstracto, no título, na ideia oculta do livro – do “Doutor Salgari”, o que acaba por se fazer é uma psicanálise de todos nós.
As razões para esta diminuição da velocidade da leitura, e daí a uma maior concentração dos sentidos profundos do que é exposto e explorado, encontrar-se-ão na profusão de texto, na sua distribuição aparentemente ilógica ou sem hierarquia na prancha, na utilização, aqui e ali, de uma grande vinheta central e várias outras, menores, espalhadas em torno, obedecendo a um princípio organizativo que torna a acção e a leitura bastante claros, até lineares, de certa forma, ainda que a vinheta central possa ser “lida” várias vezes, à medida que voltamos a atravessá-la depois de ler as outras vinhetas. Digamos que há um maior peso na clareza e linearidade, mas não deixa de existir a potencialidade desses outros desvios e alternativas. As vinhetas são as mais das vezes pequenas ou estreitas, como que “interrompidas” pelas legendas e balões, encurtando a visibilidade da cena, e lançando-a num estranho dinamismo. Quase que obriga a uma leitura cinésica, a movimentos de nos agacharmos ou de nos alçarmos frente a essas interrupções para poder vislumbrar os rostos das personagens, o objecto oculto, a completude da cena. A junção desse arranjo das vinhetas à composição da prancha acentua as suas próprias particularidades da permanente tensão entre o legível e o visível existente na banda desenhada. Estamos perante um domínio dos mecanismos da découpage e da mise en page que permite essas aproximações intrincadas e multíplas.
Quanto às imagens finais que fecham cada história, os tais posters, não terá de corresponder necessariamente a um coroar da mesma, mas antes a uma condensação e sublimação (de novo, os termos da psicanálise) dos acontecimentos relativos a essa personagem, mas sempre com desvios estranhos (personagens outras que nunca tinham aparecido, mas que são recorrentes de história para história – um centauro, uma criatura boschiana -, um novo cenário, uma relação inesperada entre as partes, etc.). São essas imagens as que preparam a ideia total de um grupo coeso e organizado entre si, de símbolos universais. Tudo concorre para essa interpretação.
As personagens são heteróclitas e uma breve descrição de algumas demonstrará o tipo de absurdo aqui presente: um robot de limpeza de um submarino que sobrevive à tripulação (ao mundo todo) e assume os objectivos bélicos da missão; um Jeremias a quem se atribuem todos e quaisquer assassínios no mundo e que é perseguido por todos, sendo a um só tempo bode expiatório e lamentador oficial; um cobarde que, de uma família de cobardes, ou é ainda mais cobarde por mentir sobre a sua coragem é corajoso por dar fim à cobardia; um homem que espera uma espécie de felicidade mas se perde nos meandros de um combate contra todas as raças da morte. Cada uma dessas personagens pertence a um universo diegético próprio, diríamos mesmo incompatível uns com os outros, mas uma vez que a lógica e o naturalismo não são características centrais em El gabinete – aquilo que parecia um relato passado nos tempos bíblicos é atravessado por uma frota de aviões, o fim do mundo congelado revela-se paisagem por onde passa uma diligência – nada nos impede de as associar umas às outras. E há pistas subtis, visuais, de uma história para a outra, que leva à ideia de que existirá um intervalo de partilha entre todos. Por exemplo, a história La Torre parece ser não apenas aquela onde a sua personagem, um ancião quase eterno, se move, mas igualmente um espelho de todo o exercício narrativo de El gabinete del Doctor Salgari: uma espécie de aleph de toda a nossa cultura, onde as divisões de tempo e espaço e cultura não fazem sentido na memória de quem as experienciou (directamente ou pela leitura), um espaço que é o livro onde o movimento das páginas permite que as histórias (e personagens, e universos) se cruzem, se misturem, se intertextualizem. Para mais, o termo de ligação encontra-se no título: todas são pacientes do Doctor Salgari. É na capa que esse encontro é dado, assim como na badana, numa lustração em que todos esperam no consultório, e no texto de apresentação. É como se existisse uma ficção adicional distribuída pelo espaço peritextual do livro. Aliás, quer o prefácio quer o posfácio se entregam a um daqueles exercícios apócrifos que, mesclando uma apreciação crítica do livro, ainda acrescentam mais elementos de ficcionalização. Por todas estas características, José Carlos Fernandes é obrigatoriamente um ponto de comparação com este trabalho de Valenzuela.
Uma das mais correntes palavras para falar deste último autor, e que pode ser perfeitamente aplicada a Santiago Valenzuela, é a de que se trata de um autor “culto”, mas em ambos os casos o que importa é, em primeiro lugar, a transformação das referências – no caso do autor português, presente através das citações antroponímicas, sobretudo – que se transformam em sugestivas associações e, em segundo lugar, a capacidade com que se iluminam as fontes dessas referências com os seus novos jogos. Ora, nesta última capacidade, Valenzuela é mais coordenado e programático (J.C. Fernandes segue uma poética diferente, já debatida) e mesmo nos casos em que constrói uma quase caótica e aparentemente fortuita concatenação de referências acaba por fazer emergir um tecido muito coerente e até crítico da História, da Cultura, enfim, daquilo a que infelizmente se tornou banal, não o sendo de modo algum, chamar de condição humana. Aliás, o posfácio ao livro, tão apócrifo e divertido quanto o prefácio, analisa cada um dos episódios, e todo o livro, como se se tratassem de casos psicanalíticos, utilizando os instrumentos prometidos por Freud. Escreve-se mesmo que se “psicoanalisa Deus”. A assunção assim de cada personagem de uma das camadas da psique ou das pulsões humanas torna-se clara, assim como as transformações que cada um desses papéis, digamos básicos, vão sofrendo ao longo dos contextos. A identidade do Dr. Salgari é desvendada no último episódio ou conto, o qual é um dos mais surpreendentes e acabados. É curioso que, até certo ponto, Valenzuela utiliza as referências já citadas um pouco como, por exemplo, Neil Gaiman, mas em vez de subsumir essas fontes à escrita circunscrita a uma fábula – por mais interessante, inteligente, fascinante que ela seja – transforma-as em matéria para criar um texto livre, aberto, sugestivo, artisticamente mais poderoso. E é esse último bloco que “fecha o ciclo” e “explicita” os gestos todos, fechando assim também o “gabinete”, que deixa de ser um gabinete de curiosidades para se tornar num judicioso arranjo tipológico da vontade dos homens.

Images à mi-mots. Bandes dessinées, Dessins d’humour. Pierre Fresnault-Deruelle (Les Impressions Nouvelles)

Autor incontornável do grupo dos críticos e teóricos franceses da banda desenhada (especialmente em torno das suas apreciações esteticizantes sobre a obra de Hergé, com Hergé Ou Le secret de l'image e Hergé Ou La profondeur des images plates, já para não falar da fundação dos conceitos, para a banda desenhada, de “linéaire” e “tabulaire”, e a direcção da agora quase mítica Communications no. 24), este novo livro reúne uma série de textos curtos, alguns deles antes publicados, de uma natureza a um só tempo crítica e celebrativa, de uma inclinação ascendente iconófila (suas palavras). O aspecto sobretudo frisado por F.-D. é o da “escrita gráfica”, quer dizer, este específico trabalho de uma enunciação que passa pelo gráfico e que, assim, permite a união num só discurso (contínuo, no interior do livro) a apreciação daquilo que o autor discerne como “formas longas”, as bandas desenhadas – o que não carece de maior explicitação, apesar do autor fazer um contínuo desdobramento das suas especificidades -, e as “formas curtas”, falando, à vez, dos “desenhos segmentados”, dos “desenhos dilatados”, e dos “desenhos estreitos”. (Mais) 

Nous est un autre. Michel Lafon e Benoît Peeters (Flammarion)

Como indica o subtítulo deste livro, trata-se de um “estudo de duetos de escritores”, compreendendo trabalhos de colaboração, influências e ascendências fortíssimas, trabalhos de editores vincadamente balizados sobre o dos escritores, mas também abusos e roubos, e ainda aquilo que em francês se chama de um trabalho de um nègre (e também em Espanha) e em inglês de “ghostwriting” (alguém que escreve em nome de outrem, que assina). Fala-se de Jules Verne e o seu editor Hetzel, de Marx e Engels, de Colette e de “Willy” (ou Henry Gauthier-Villars, o seu primeiro marido, ambos na foto da capa), de Deleuze e Guattari, de Borges e Casares, de Julio Cortázar e Carol Dunlop. Mas, e é este capítulo que importa discutir neste espaço do lerbd, fala-se também de Hergé, entre as páginas 266 e 284. (os outros capítulos encerram igualmente uma iluminação para certas questões literárias, culturais e da banda desenhada, mas não é este o espaço para a sua discussão). (Mais) 

1 de agosto de 2008

The Complete Kake Comics. Tom of Finland (Taschen)

A Taschen começou a sua vida editorial precisamente como editora de banda desenhada, toda uma série de autores (então contemporâneos) Tramber e Jano, Ben Radis, Serge Clerc, Yves Chaland, Daniel Torres, Martin Veyron, mas igualmente dedicando-se aos territórios do erótico com os irmãos Varenne, o Ranxerox de Tamburini e Liberatore, Wally Wood, Guido Crepax, logo, estes últimos gestos – isto é, a edição da obra de banda desenhada de Tom of Finland, a da obra de Eric Stanton (famoso autor de bandas desenhadas eróticas cujo fetiche primeiro é a humilhação masculina às mãos de femmes – literalmente, por vezes – fatales) e ainda o novo (e caríssimo!) Robert Crumb's Sex Obsessions - podem ser vistos como uma forma de revisitar as origens ou de fechar um ciclo ou de repesar a vida, etc.
A edição da banda desenhada do finlandês Touko Laaksonen, mais conhecido como Tom of Finland, já havia sido alvo de uma edição, numa pequena caixa de cinco volumes, também com a colecção completa da revista de banda desenhada Kake, havendo publicado 26 números entre 1968 e 1986, num formato “de bolso” equivalente à Gina ou à Weekend Sex, para não contrastar com a família de publicações pornográficas. Tratavam-se de revistinhas de uma vintena de páginas, com um desenho por prancha, usualmente sem texto (ainda que surja esparsamente uma onomatopeia, uma fala), e em que o artista revelava o seu virtuosismo em termos de iluminação, anatomia, movimento e torção dos corpos, as texturas dos tecidos e peles, quer a lápis e carvão, quer por vezes a tinta, e tudo, tudo, subsumido ao programa da excitação sexual: porno. Este é um só volume, de mais de 700 páginas, coleccionando toda as aventuras do protagonista, que vemos na capa, Kake, um Übermensch ultra-sexuado, que alimentaria as páginas da revista homónima, e as fantasias dos seus leitores.
É curioso como o Erotismo, usualmente na banda desenhada – modo repetido nos estudos dedicados ao tema, fanzines que reúnem trabalhos, exposições públicas, etc. -, é confundido com apenas uma das suas formas: as fantasias heterossexuais masculinas em torno de mulheres praticamente dispostas a qualquer ataque sexual da parte dos homens. Raramente se encontram experiências outras, de mulheres comandando o leme (ou se o comanda, é para sublinhar as fantasias masculinas, de resto, como no caso de “lésbicas para satisfação masculina”), ou de fantasias homoeróticas, estas as mais das vezes votadas ao silêncio da parte daqueles que mais pugnam pela discussão do “erotismo visível”, “aceitável”, etc. Mas, do outro lado da barricada (gostaria que não existissem estes termos bélicos, mas infelizmente há ainda combates a fazer), surgem muitas vezes autores com obras surpreendentes, poucos, mas de resto, numa percentagem idêntica à daqueles que, no interior do erotismo normativo, conseguem atingir um outro patamar de profundidade com as suas obras (Varenne, Crepax?): veja-se o exemplo de Nazario. Quanto a autores que, no domínio da autobiografia ou autoficção), exploram as crises e combates necessários da homossexualidade no mundo, criando ao mesmo tempo obras-primas em termos de narrativa existencial na banda desenhada, arrolem-se os nomes de Howrd Cruse e Fabrice Neaud, por exemplo.
Mas, em relação Tom of Finland, como se viu e como se vê, não é preciso estar com paninhos quentes, uma vez que a sua banda desenhada é, sem discussão e complexidades, pornográfica: não só as relações sexuais são explícitas, e de uma visibilidade extrema (a exacerbação e hipérbole dos corpos musculados, os pénis gargantuescos, a viscosidade dos uniformes acentuada), como o objectivo das histórias é ir directo ao assunto, representar o mais claramente o encontro sexual e, assim, provocar nos leitores o “frenesim do visível”, como Linda Williams chamou à pulsão escópica (i.e., “do olhar”) presente na pornografia. Não há desculpas, as aventuras de Kake servem para projectar todas essas fantasias: o tema da violência ou mesmo da violação, de Kake sobre os outros ou de outros sobre Kake, a mera circunstância de um encontro transformado numa desculpa para uma orgia entre vários homens (o máximo é de 10, no número 23), são apenas exemplos.
Por outro lado, as criações de Tom of Finland são claramente subversivas: são muitas as histórias nas quais as figuras de autoridade (polícia, militares, marinheiros, Mounties do Canadá) participam, para cair ao mesmo nível horizontal das restantes personagens (se não fizerem desde logo parte do mesmo nível social); não se trata somente de uma fetichização dos uniformes, ou melhor, é isso, comportamento que se traduz por uma metonimização destes como instâncias das instituições que representam, podendo-se assim instituir uma relação directa com elas, e não com as pessoas, os indivíduos que estão ali de facto. Esse nível é horizontal por várias ordens de razão: é o mesmo nível social (amantes), é o mesmo nível actancial (actuam de igual para igual), o mesmo nível estético (os corpos misturam-se na figuração e no papel) e, perdoe-se a piada de mau gosto, porque se encontram ao “nível da cama”, o horizonte onde as linhas de facto se tocam. O homoerotismo de Tom of Finland é daquele que as características masculinas são acentuadas até a um máximo quase caricato, expurgando-se todo e qualquer traço que pudesse ser encontrado de feminino: não estamos perto aqui do homossexual representado como num território entre os “papéis masculinos” e “femininos” (de resto, os quais felizmente vão fazendo cada vez menos sentido, apesar da resistência generalizada), muito menos o “travesti” (que, como é visto em The Invisibles, apenas confirma uma percepção sobre o feminino a partir dos filtros da projecção do desejo e fantasia masculinas), mas mergulhando no “ultra-masculino”. Ainda que quase todos os homens sejam representados com feições delicadas, lábios grossos e redondos, belos, é a masculinidade que torna forma robusta. Por um lado, não é mais do que todas as fantasias também presentes, se melhor disfarçadas ou sublimadas numa direcção de espelhismo, nos super-heróis; por outro, e para citar de cor Jean Genet de Nossa Senhora das Flores, “macho que fode macho é macho a dobrar”. O poder masculino, portanto, fica sempre por cima.
Mas como explica a editora (no sentido inglês de editor) deste volume, Dian Hanson, Tom of Finland fez criar um espaço novo para a representação sexual homoerótica, até então nunca visto. Não se trata apenas da fetichização fantasiosa destes corpos imensos e ultra-masculinizados (os quais, na verdade, correspondem a uma evolução interna do estilo do autor, como se pode descobrir através de outros seus trabalhos), mas igualmente da introdução de uma certa ambiência de humor, alegria e liberdade. Todas estas personagens, mesmo naquelas histórias que se iniciam com fantasias violentas – violação, surpresa em ser-se apanhado, na prisão, na cela militar, etc. -, acabam por se beijar, acariciar, abraçar, descansar juntos e, sempre, sorrindo. Uma outra estratégia narrativa, também indicada nos textos periféricos é que a presença de Kake faz com que os homens com que se cruzem rapidamente se tornem tão desejosos de estar com ele como ele com eles, mesmo que haja uma resistência inicial (como se fossem heterossexuais). Nisto também não há diferença nas fantasias, em que nós sempre projectamos a ideia de sermos irresistíveis a quem desejamos possuir. E a existência de um parque onde se lê, à entrada “Men Only” apenas corrobora essa fantasia absolutamente liberta e feliz na expressão da sua sexualidade. Tom of Finland permitiu essa nova atitude, e se bem que não o fez sozinho, contribuiu em larga medida para a expressão sexual desta tribo de “bikers”, “leathers” e “bears” que mesmo os mais homófobos ou incautos conhecem, pelo menos do “Blue Oyster”...
Nota: o scan da imagem da capa é do livro lido, mas as imagens do interior foram retiradas do site da Taschen, uma vez que o livro é demasiado espesso para conseguir um bom scan.

Stripburger # 47

A leitura desta publicação semi-regular da Eslovénia faz, em retrospectiva, ver alguns dos gestos das antologias e publicações nacionais (Mesinha de Cabeceira/Crica, Opuntia, Imprensa Canalha) como estruturadas de forma a poder dialogar com os mesmos interlocutores.
A revista é em inglês, reúne trabalhos de autores um pouco de todo o mundo (Brasil, Coreia do Sul, Europa em geral), e não se fecha a estilos ou temáticas. Isso leva, pelo que se depreende do editorial, a certas queixas locais, que não nos poderiam ser mais indiferentes. Mas se as transpormos aos problemas usualmente emergentes em Portugal, apercebemo-nos de que não só não somos impermeáveis a essas quedas umbiguistas como essas questões se tornam de facto “mesquinhas” (isto é, minúsculas, insignificantes). A aposta deve fazer-se, sempre, em relação ao público imediato: se um autor tem consciência de estar a trabalhar para um território menor, em termos de massa de público, e que o seu público pode ou é composto pelos leitores internacionais, de uma comunidade inserida num circuito mais ou menos coeso e capaz de fazer circular informação, não há quaisquer obstáculos a que esse mesmo autor crie e faça o seu gesto na direcção desse público mais alargado. É o que a Stripburger tem feito ao longo dos últimos anos, quer através da própria revista quer através da sua editora, com ma mão-cheia de antologias.
Este número reúne vários autores, como se esperará, uns mais fortes que outros. Falemos daqueles que mais se destacam. O autor em destaque deste número é do franco-brasileiro Matthias Lehmann, com a capa (toda à volta), uma entrevista e a primeira e maior história da publicação. Esta é uma pequena novela que se passa totalmente no interior da casa de Sonia, mostrando os últimos preparativos para uma festa, a chegada dos convidados, e depois, saltando de conversa em conversa, impedindo qualquer atenção continuada junto a qualquer uma das personagens, como se fôssemos um insecto nervoso, vai construindo-se uma terrível e tensa rede de relações entre todos que explode numa discussão final, que a todos arrasta. Apesar da individualidade das personagens, apercebemo-nos de que esta história não é mais do que uma capacidade de ficcionalização da mais básica observação (básica por ser universal, não por ser fraca) dos comportamentos humanos.
Por razões de interesse pessoal, destaca-se também a coreana Choi, Juhyun, que apresenta uma simples e breve história, mas que é ao mesmo tempo um retrato social contemporâneo: o acto de resistência dos papéis sexuais em que uma mulher jovem incorre quando fuma em público. Bendik Kaltenborn contribui com cinco histórias curtas, sem qualquer ligação entre si, coloridas e com o tipo de humor absurdo, mas ao mesmo tempo estranhamente familiar, para não dizer universal, a que nos habituou noutros seus trabalhos espalhados em antologias. Finalmente, uma história maior da sueca Anneli Furmark, “International Women’s Day”, que ao início parece uma variação de baixa intensidade da escrita diarística feminina, subitamente torna-se numa pequena aventura de sedução lésbica que faz mais emergir os modos como os seres humanos rapidamente se tentam aproveitar das situações para se sentirem bem consigo mesmos do que uma verdadeira entrega à descoberta e à sinceridade social.
Não quero dar a entender que as restantes participações são menos dignas de atenção, simplesmente que estas são as que se destacam na perspectiva tomada (parcial e temporária, como sempre). Terminemos esta nota indicando que também foi publicada uma história sem título de Filipe Abranches (que havia sido publicada no primeiro número da Cheval Sans Tête, da Amok, em 1996, e mais tarde em Portugal na Azul BD Três) e ainda duas recensões críticas a Babinksi e a Já não há maçãs no Paraíso, voltando desta forma à discussão inicial.


Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pela oferta.