25 de maio de 2008

O Percutor Harmónico. André Lemos (Ao Norte)

Este é um livrinho pequeno, poder-se-ia dizer “de bolso”, mas para além de ser em si mesmo uma frincha que se estende tão grandemente quanto os cinemascopes antigos, é também a primeira sessão de uma maratona do encontro entre o cinema e a banda desenhada.
O Filme da Minha Vida é uma colecção e projecto (a longo, longo prazo, como soe no seu grande projecto heteronímico) de Tiago Manuel, pelas edições Ao Norte que pretende editar pequenos livrinhos nos quais variadíssimos autores (de banda desenhada, ilustração, desenhos) criarão um trabalho associado de um qualquer modo a um filme em particular, que são eles mesmo a escolher (um filme nunca é sempre para toda a vida, diga-se, mas pode sê-lo durante aquele instante feliz que lhe permita criar algo, e isso é para toda a vida). Em várias séries de dez títulos/dez artistas, cada um desses volumes será acompanhado por uma introdução por um ensaísta ou crítico de banda desenhada (a primeira será com textos de João Paulo Cotrim, que depois se reunirão num volume único, havendo uma vontade também de criar “sabedoria” nos discursos sobre e com a banda desenhada, um programa pedagógico profundíssimo e estimulante e, nada paradoxal, descontraído). O primeiro bilhete segue com O Percutor Harmónico, de André Lemos, “casando-se” com o filme de Sergio Leone Aconteceu no Oeste.
Como Cotrim assinala nas palavras do seu texto, as relações entre a banda desenhada e o cinema não se cingem somente a transmissões entre temas e matérias, tampouco a instrumentos superficialmente idênticos (na verdade, “instrumentos” numa das artes mas absoluta linguagem na outra), mas antes à “enigmática relação entre elementos subtis: texto e imagem”. A chave desta frase está em subtil, no sentido de grácil, penetrante, algo pequeno mas marcante. Lemos como que selecciona apenas a mais famosa cena, em que a personagem de Charles Bronson confronta três homens mal acaba de chegar à pequena cidade de comboio, e toca na gaita-de-beiços a igualmente famosa melodia de Morricone. Para um autor que é sobretudo conhecido por não desperdiçar qualquer oportunidade em manchar o máximo as folhas de uma tinta negríssima, que sabe tornar ainda mais negra do que quando sai do boião, a última imagem, de um cadáver prostrado no chão e como que esmagado pela imensidão de um céu branco imaculado, sem incómodo, é significativo. Não há aqui qualquer transposição linear ou de composição entre os factos do filme e os factos do livro. Há antes uma tradução de ritmos que, sendo duas linguagens diferentes, terão necessariamente de ser diferentes: e o título explica isso mesmo. Ritmo e harmonia. Branco e negro.
Sem qualquer tipo de displicência nem falta de respeito para com André Lemos, nem dos autores já prometidos nas próximas edições (já prontas), parecer-nos-á, depois dos primeiros títulos, que a colecção O Filme da Minha Vida será uma daquelas situações em que se emprega, com toda a acuidade, a expressão "o todo é maior que a soma das partes". Haverá, sem dúvida, títulos individuais fulgurantes, mas todos eles contribuirão para a instituição de um projecto pedagógico e amplo singular. Estaremos, portanto, no fim deste imenso projecto, e seu fim principal mesmo, perante não só uma grande lição de cinema e de banda desenhada e de ilustração mas igualmente sobre os intervalos, tão percutidos e vincados quanto harmoniosos e gráceis, do acto criativo.

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