29 de novembro de 2007

O Relógio Insano. Eloar Guazzelli (Grafitti)

O mais das vezes, as criações (cinematográficas, literárias, banda desenhísticas) que versam a ficção científica, a futurologia, as distopias, ou temas quejandos, apostam sempre num dado passo, mais tarde ou mais cedo no interior da estória, a que se poderia dar o nome de “a explicação, finalmente”. Por mais distendida e (aparentemente) descentralizada que a trama pareça ser, há sempre um momento de esclarecimento e hierarquização das informações, dos elementos. Eloar Guazzelli, em O Relógio Insano, dispensa-o. Os leitores são ofertados com fragmentos de informação suficientes para perceberem quais os limites do muro da utopia/distopia pela qual se movem as personagens que vão surgindo, assim como os laços que as unem diferentemente (uma família, uma traição, um retorno...). Há perguntas retrospectivas que não se colocam e não são por isso respondidas, outras respostas surgem apontando a outras perguntas laterais, que por sua vez levarão a outras respostas... É como se nos obrigasse a fazer um pequeno trajecto no perímetro do pensamento que esta história provoca sem que fechássemos a linha, mas adivinhássemos esse contorno geral. 

Evereste. Ricardo Cabral (Asa)


Evereste é um daqueles livros que vive numa imediata relação com algo que se encontra no seu exterior, a saber, os “factos reais” em que se baseará para a sua construção; e para mais, são “factos” sobejamente conhecidos, porque publicitados sobremaneira nos media aquando do seu evento: a morte do alpinista belga Pascal Debrouwer, companheiro de uma das escaladas de João Garcia, o famoso alpinista português. Ricardo Cabral aproveita uma mera circunstância de familiaridade com João Garcia (serem ambos dos Olivais), talvez alguma admiração pelo atleta, e as circunstâncias desse trágico acontecimento para construir um livro singelo, isto é, despretensioso e que cumpre cabalmente aquilo que promete: uma história envolvendo o desejo de um homem, que se vê cumprido, mas com um pesado revés. Porém, enquanto livro autónomo, pouco importa para uma sua leitura desapaixonada (que não é de menosprezar, simplesmente não cultivada aqui) essa sua relação com os “factos”; tal é antes matéria de um comentário de natureza jornalística ou biográfica. A relação que uma obra estabelece com a realidade deixa de fazer peso no momento em que ela existe como obra. Não se apresentando como testemunho tout court, i.e., documento, e instando-nos à sua interpretação através da inclusão de estratégias de apresentação e representação – a obra dá-nos de novo o que nos quer dar – abre-se para fora. Evereste é assim um acto independente de Ricardo Cabral.
Por ocasião do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, foi-nos possível ver a chamada arte original deste álbum (arte que se anula no momento em que se transforma no texto a ser revelado enquanto banda desenhada): desenhos a preto e branco, onde as figuras humanas devem algo da estilização de uma influência pela tradição mais visível da mangá mas em que os cenários ganham um direito de cidadania francamente significativos, o que faz todo o sentido, já que é próprio dos textos em torno dos Himalaias dar conta do esmagamento sublime (em todo o sentido desta palavra) a que obriga. O seu posterior tratamento gráfico a cor acaba por esbater algum desse trabalho, apagando os pormenores que seriam visíveis nesses primeiros traços, mas compreende-se que tal aconteça, tendo em conta os jogos de luz que o autor pretende dar em relação às flutuações provocadas por noites sem nuvens e onde a luz difusa das estrelas se esboroa por todos os cumes, a multiplicação dos reflexos da luz diurna nos mantos de neve, as súbitas sombras brancas provocadas pelo vento, o negro onde se cai pelas portas do pesadelo.


Onde O Relógio Insano é centrífugo, Evereste é centrípeto. O intervalo do tempo diegético e o espaço em que a acção se desenvolve é diminuto, se se exceptuarem as pranchas introdutórias, as quais poderão ser entendidas como uma analepse da personagem principal. A acção é concentradíssima, em metros e em horas, o que nos provoca a sensação da lentidão esmagadora que serão esses últimos metros, essas últimas sensações... Mas é precisamente nessa “mais alta solidão” (para citar o título de um livro de João Garcia) que as memórias do que esse desejo de conquista de um cume representa, do que a intimidade com o sublime “tecto do mundo” permite. O autor prefere concentrar-se numa mostra das acções, e não tanto entregar-se a desvios dessa atenção, mas o uso constante e espaçado das legendas da voz interior do protagonista (quiçá baseados em textos reais de João Garcia?) – com algumas excepções em que serve para transmitir os diálogos via rádio – leva-nos a pensar que haveria uma vontade de nos abrir caminho a essa mesma interioridade. No entanto, ela cinge-se sobretudo à acção, com a excepção do início retrospectivo e o final funéreo.
Evereste não me parece querer recriar a linguagem da banda desenhada, e nem tem de o fazer. Basta-lhe (à obra, entenda-se) que cumpra aquilo a que se promete, e como se afirmou, esse objectivo, que é simples e de uma subtil calma, é atingido. Apesar do grande dramatismo a que os eventos poderiam dar azo em termos narrativos (mais ou menos ficcionais, mais ou menos fantasiados), Ricardo Cabral (com João Garcia?) opta por abraçar-se a um possível realismo, sem comoções, respeitando as velocidades e a gravidade que as altitudes frias do Evereste permitem, e isso por sua vez inflecte outro tipo de gravidade às acções representadas no livro. É como se fosse uma espécie de ilustração ao paradoxo de Zenão – ainda que com uma consciência momentânea e depois do facto - de que por mais passos à frente que possamos dar, por mais providenciados que possamos estar, a Morte chegará sempre mais célere do que se esperava.

27 de novembro de 2007

Le Maître & Marguerite. M. Zaslavsky e A. Akishine (Actes Sud) - reprise


Havendo trocado correspondência com o escritor desta adaptação, Misha Zaslavsky, serve o presente post para simplesmente indicar o acrescento de alguns comentários do mesmo ao texto e outras informações adicionais.
Agradecimentos a Misha, pela sua simpatia. Spasiba!

24 de novembro de 2007

Horace Dorlan. Andrzej Klimowski (Faber and Faber)


Como em muitos outros passos, a primeira pessoa a introduzir este autor ao público português (um público reduzido, mas sem dúvida que mais atento e capaz de traçar caminhos próprios) foi Domingos Isabelinho, e remeto à leitura do seu artigo, “Os sonhos e os segredos de Andrzej Klimowski”, publicado na Satélite Internacional no. 3 (Maio de 2003), no qual discorre sobre os dois anteriores livros do autor anglo-polaco Andrzej Klimowski, a saber, The Depository: A Dream Book, de 1994 e The Secret, de 2002 (ambos também da Faber and Faber). Tratam-se de livros que apresentam uma narrativa dita “muda” através de uma sequência de imagens, na senda de autores como Masereel, Ward e tantos outros (* e *). É também esse um excelente ponto de partida para uma introdução mais geral e para toda uma série de pistas de leitura que serão aqui retomadas com o mais recente livro do artista, Horace Dorlan, mas que estabelece desde logo algumas diferenças com os anteriores. A grande diferença – mas veremos que é a um nível aparente, não profundo – é que para além das sequências de imagens sem texto, ou melhor, sem falas directas das personagens ou intervenções de uma voz narradora externa (e logo, a inclusão de balões ou de legendas), se apresentam trechos de texto, verbal, literário, de narração, com diálogos, descrições, comentários não-narrativos da parte do narrador, que nos parece ser uma ora das personagens internas à diegese, ainda que não central, Ed Green, ora o próprio Horace Dorlan. Muitos dos críticos (inclusive as “laudas” das contracapas) se socorrem dos nomes de Kafka ou de movimentos como o Surrealismo para tentarem demarcar o universo de referências de Klimowski, como primeira abordagem a um entendimento dos seus aparentemente desconexos e ilógicos contos. Todavia, é preciso procurar as especificidades da escrita de Klimowski, que não participa nem do humor irónico ou perturbante de Kafka nem das procuras no acaso dos surrealistas (como sucede, por exemplo, no grande autor do movimento de “bandas desenhadas”, Max Ernst com os seus romances-colagem).
O tentarmos fazer uma pequena sinopse da estória, para além de um exercício difícil e que apaga todo o valor do texto por apenas mostrar a sua fábula (emprego aqui os específicos termos da teoria narratológica triádica como exposta por Mieke Bal, sendo o primeiro referente aos signos legíveis e interpretáveis, finitos no suporte material da obra, e a segunda os eventos na sua organização lógica e cronológica; passando-se ainda pelo crivo intermédio da história, que não é senão a forma de organizar os elementos da fábula numa ordem imaginativa e que se expressará num texto), seria sobremaneira difícil pois obrigar-nos-ia a transpor todo o texto, já que a fábula se dilui completamente numa impossibilidade, em elementos díspares e contraditórios, que se anulariam entre si. Ou melhor, se tomarmos em conta a emergência de cada uma dessas porções de elementos, cada “parte da estória”, como “verdadeiras” ou “possíveis”, chegaremos àquilo que Leibniz chamara de compossibilidade. Um exemplo acabado desse conceito na ficção (cinematográfica) encontra-se em L'Année dernière à Marienbad, de Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet, mas há muitos outros realizadores que nisto mergulham, de Cronenberg a Lynch. Esta será a primeira pista para a estranheza provocada por Horace Dorlan. Não significa isto que não possamos tentar uma aproximação: Horace Dorlan é um entomologista conceituado, que estudara em Pisa quando jovem e deseja fazer uma apresentação científica que una a solidez académica à criatividade artística, unindo à sua própria capacidade de apresentar factos e trabalhos de investigação um espectáculo musical, visual e performativo. Nesse aspecto, é como se Dorlan procurasse uma outra maneira de pensar e, assim, de escrever sobre e se inscrever no mundo. Mas algo ocorre, talvez um acidente, talvez com o próprio Dorlan, talvez com um seu assistente (Ed), talvez apenas tenha sucedido um pequeno contratempo ou uma confusão qualquer. Confusão que se ressentirá mais na narrativa do que em qualquer outra dimensão. O que acontece é que ficamos perdidos em relação ao que é o nível primeiro da narrativa (ou pensamos ser esse nível) e os níveis intercalados ou hipodiegéticos (ou o que julgamos que sejam, com as redes complexas de elipses e metalepses, isto é, de um modo simples, “confusões” em relação a quem narra o quê, e que vão tornando tudo cada vez mais intricado, até atingirmos um final que não se trata de um desenlace nem de um remate, pois nem havia trama clássica nem uma só direcção a fechar), e chegamos mesmo a pensar que alguns desses níveis se imiscuem uns nos outros, misturando-se impossivelmente.
Esta convergência de vários níveis de eventos e níveis narrativos, quer conforme a pessoa do narrador quer em relação à “verdade” da diegese são o que ecoa em Horace Dorlan: de um momento para o outro, não estamos de modo algum seguros se estamos a seguir uma história ou outra, apenas sabendo que ambas não podem ser reais – a mulher de Horace ou esteve ou não esteve com ele em Pisa, ou é ou não é uma saxofonista exímia -, e paulatinamente somos levados a crer que uma delas é falsa ou fictícia (o que é sempre curioso acontecer no interior de uma ficção). Mas quando digo “uma delas”, ainda pareço dar conta de que é possível distinguir como que dois trajectos mais ou menos estanques; apenas porque incorro numa redução drástica que passa pela tentativa de verbalizar de outro modo o que a literatura permite, e essa clareza não existe no livro de Klimowski. Claro está que esta “falta de clareza” não deve ser considerada no seu mero valor descritivo e menos ainda na moralidade literária que parece indicar; bem pelo contrário, indica essa natureza de estranhamento e de aniquilamento de marcos lógicos que nos fazem melhor perder nos “bosques de ficção” (U. Eco). Só que, de quando em vez, há bosques bem mais cerrados do que outros, por vezes mesmo bosques nos quais não há caminho de retorno ou de saída, e isso só pode ser fonte de felicidade ao leitor. Se leitores existem que apenas se congratulam no conforto dos sendeiros mais arranjados e seguros, são esses leitores que não entendem que essas mesmas ficções são as mais marcescíveis com a marcha do tempo.

Mas tentamos aqui tornar mais claro – impossível – ou obscurecido por uma visão teórica – tal como quando fechamos ligeiramente as pálpebras para ver num dia especialmente luminoso -, como dizíamos, a estória que é construída pelo texto verbal. Sabemos porém que há uma grande parte ocupada pelas imagens, ou por um texto visual. Não será surpreendente nem chocante que esse contraste entre as várias “hipóteses” encontre, ao nível da diegese, uma possível explicação (ou interpretação, pelo menos), a qual nos leva a duas afirmações complementares: primo, há afinal uma história que é construída pela parte do texto somente; secondo, as partes reservadas às sequências de imagem somente seriam na verdade dispensáveis sem ocorrer uma quebra interna a esse mesmo texto. Cada uma das partes das imagens intercaladas não influi um sentido directo e imediato sobre a narrativa exposta da mesma forma. Mesmo a inclusão de estratégias mais próximas da banda desenhada como entendida de uma forma mais normalizada não resolvem o problema levantado. Há dois finais de capítulo que parecem continuar ou ilustrar esses mesmos capítulos, há uma sequência que retoma o que havia sido descrito verbalmente ao princípio, há um momento em que a conversa entre Dorlan e a sua mulher, Angela, passa pela apresentação de imagens que nós vemos também com eles, e o livro fecha-se com duas imagens que explicitam esse final. E, mais importante, existem quatro sequências que parecem desconexas ou apenas tangencialmente associadas à narrativa veiculada pelo texto (já de si desconexo). Mas nestes casos a pergunta que obrigatoriamente terá de surgir é: então que sentido têm esses mesmos trechos? Que diferenciação de sentido exercem? Qual o papel que lhes é reservado?
Há muitas afinidades que se poderiam procurar na obra de Klimowski. As constantes comparações com o cinema não é de todo descabida, pois parece ser com realizadores e argumentistas que surgem os mais imediatos elos. De um modo muito superficial, poder-se-ia por exemplo arregimentar alguns dos filmes de Peter Greenaway, nos quais homens das ciências – das exactas e observacionais – se aproximam de outros campos, artísticos, místicos, ou até mesmo campos que quanto mais lógicos mais loucos (Drowning by Numbers), para poder levar algo que é “More like a vision than a scientific lecture”, diz Dorlan a Angela. Uma outra referência será a Dennis Potter, famoso autor e dramaturgo inglês, sobretudo a três das suas séries de televisão absolutamente espantosas (ou duas, uma vez que os dois últimos títulos constituem um só corpo narrativo): The Singing Detective, de 1986, e Karaoke e Cold Lazarus, de 1996. Potter exerceu nestas séries (e noutras também, estou em crer) uma mistura muito particular de narrativas de vários níveis hipodiegéticos e de metalepses, a ficção interna desenvolvida a entrar na primeira ficção (por exemplo, um escritor desenvolve uma personagem que acabará por encontrar no seu próprio mundo como se de uma pessoa real se tratasse, mas em que essa personagem o soubesse sê-lo, ou outra variação), e ainda misturando dados biográficos reais (mas de que apenas nos podemos inteirar com referências extratextuais). Esta comparação não é displicente, uma vez que no texto, quando num dos momentos, num dos níveis, Ed Green se refere à sua própria obra como uma “science fiction biography”, precisamente as mesmas palavras com que se poderia apodar Cold Lazarus (e até certo ponto The Singing Detective). Este estranho livro que Ed escreve ecoa os estranhos desenhos esquemáticos que Dorlan parece ter criado aquando do seu acidente. Duas obras estranhas que nascem da doença, de uma interrupção de um trabalho lógico e sóbrio, interrupção que parece libertar uma possibilidade qualquer nas personagens (só numa, na outra, em ambas?). Qual destas obras é ficção, dentro da ficção geral do livro de Klimowski? Qual delas é que exerce maior domínio sobre as restantes histórias, ou sobre a “realidade” da ficção primeira? Ou será antes que nenhuma delas têm predomínio e ambas se espelham, espelhando-se na e espelhando a ficção primeira? Em termos temáticos (mas figurativos também, ou “de personagem”, já que voltamos a encontrar as pessoas-insecto, as criaturas aladas, os livros enquanto seres vivos), portanto, Horace Dorlan parece exponenciar aquilo que já havia estado presente nos trabalhos anteriores e que, no caso particular de The Depository, ecoava um incipit idêntico ao de Das Idee de Masereel (com quem partilha afinidades estilísticas, já que as especificidades das xilogravuras de Masereel parecem ser simuladas pelos desenhos de Klimowski: a leveza do pincel ou caneta permite uma maior ligeireza – que não deve ser confundida com “leviandade” mas brevidade, não “inconsequência” mas destreza - e maleabilidade que a incisiva goiva ou o profundo buril): os conceitos podem surgir ao seu criador quando este menos espera, ou quando já desespera, e pode ganhar uma vida própria, que já não lhe pertencerá, e ser usada e abusada por todos (vai não só ao encontro de, mas ainda contra a interpretação), e para bem ou para mal ganhará uma liberdade máxima (“para mal” significa que pode levar essa ideia, esse conceito, essa obra, à morte dela mesma). Essa pode ser, porém, a felicidade que cabe a autor. Com The Secret, há mesmo trechos narrativos que se parecem repetir em Horace Dorlan: entomologistas, performance-conferências, mulheres-morcego, homens-insecto...
A atenção de Klimowski incide sobre todos os sentidos do corpo humano, e há um grau, na narrativa, muito atento aos pormenores de arranjo das personagens, aos espaços, às coincidências de um local com uma obra de pintura, à forma de disposição de uma ementa, aos sons e cheiros que rodeiam um evento, uma forma de atenção minúscula que está em directo contraste com o modo de expressão visual pelo qual o autor opta: grandes áreas de pretos e brancos com alto contraste, personagens e objectos construídos com linhas de grossos contornos e pouco lugar para detalhes, uma figuração algo titubeante, que mais deve a uma breve caracterização por sinais mínimos gráficos do que por uma aturada personalização das personagens (uma estratégia, enfim, comummente empregue na banda desenhada dita “clássica”, sobretudo no eixo franco-belga). Ou seja, a bifurcação dos modos presentes no livro acabam por fazer emergir uma verdadeira contradição, não apenas pela inércia de serem duas “linguagens” diferentes, mas pelas maneiras que cada uma dessas linguagens se constitui. Se, portanto, em termos narrativos, a parte da imagem se mantém na mesma linha disruptiva que a da palavra, já numa aproximação de detalhe elas opõem-se. Um dos sentidos, todavia, é mais exacerbado que outros: o da visão. À partida, parecerá que não estou a apontar para nada mais do que a mais banal das direcções a apontar. Mas não me refiro à visualidade permitida nem pelas próprias imagens nem por aquela capacidade descritiva a que a maioria dos leitores se lança para chamar um determinado escritor de “muito visual”... A visão a que me refiro surge pelos jogos de reflexos, de fantasmas, de trocas de olhares que acontecem entre as personagens. A mera leitura do texto desocultará o sentido destas palavras. Ed Green conversa com fantasmas; Dorlan olha um homem que poderia ser ele mesmo no balcão da varanda de um apartamento que habitara, e um reflexo ao fundo de um lanço de escadas, e uma mulher que a custo reconhece, e as multidões e as acções delas nos lugares públicos onde com elas se cruza. A nossa leitura, se atenta, saberá desocultar outros tantos fantasmas de sentidos, em todos os sentidos.

23 de novembro de 2007

Glomp no. 9. AAVV (Boing Being)



Ainda que corra o risco de cair numa apresentação superficial e parvamente (em ambos os sentidos, de limitação quantitativa como de restrição do espírito) redutora da filosofia, poder-se-á dizer que existem duas grandes atitudes perante ela: a de a aceitar como um movimento intrínseco ao homem, que ganha graus cada vez mais complexos e acabados (uma verdadeira filosofia) ou como a de perda de tempo, algo impenetrável num espírito que se chama a si mesmo “prático”. Mas a esses crentes na superioridade do pragmatismo, respondo o mesmo que Carlos Bruno, o protagonista de Mudança, de Vergílio Ferreira: “O senso prático é a pior besta de crueldade. Creio que por querer dar-se ares de razão que afinal dispensa”. É o fito da filosofia colocar problemas, não providenciar respostas.
Uma das mais belas lições que a filosofia pôde dar vem de Kant, quando este fala da única comunidade possível entre os homens, que é a estética. É só no horizonte de partilha de um mesmo prazer estético que o homem sabe conseguir estabelecer verdadeiros elos com os outros homens. Bem viam os gregos em distinguir os amores obrigatórios (pela pátria, pelos pais, pela família) dos acidentais (as paixões, inclusive as eróticas, sexuais, carnais) e dos escolhidos pela ordem da razão (as amizades). Os elos da amizade são os que mais verdadeiramente resistem à conturbação do mundo, e mais fortes serão esses elos quanto mais fortes forem as partilhas do gosto. É ainda Kant que afirma que o gosto, não se podendo disputar (“é bom!”, “não, é mau!”, “não tens razão!”, “tenho sim!”), pode-se discutir: i.e., entrar-se logo à partida num acordo primeiro de que eventualmente se poderá alcançar um acordo último, uma convergência, concordância, e, logo está, uma verdadeira comunidade.

São todas estas lições que me fazem aproximar de uma publicação como a Glomp com uma enorme esperança em que lentamente uma determinada comunidade se vai formando e expressando de uma forma tangível, uma comunidade atenta, inteligente, criativa, para com uma leitura da banda desenhada como linguagem totalmente livre de preconceitos de qualquer espécie, desprovida de limitações de qualquer tipo, e ainda despretensiosa em relação a qualquer sorte de caminho programático.
É por isso curioso que muitas das reacções que por vezes surgem em determinadas plataformas de discussão sobre esta área me surpreendam pela negativa, e as mais das vezes por revelarem aquilo a que se pode dar o nome (recorrendo a um outro filósofo ainda, Wittgenstein), de “cegueira aspectual”: isto é, não querer ver as nuances de um problema porque essas nuances escapam à experiência mais chã que se tem da mesma cor, território, conceito, etc. Ou, por outras palavras, revelando como um certo pensamento prático é inconsiderado para com uma sensibilidade mais ampla e aberta a experiências diferentes mas tão ou mais efectivas do que aquelas a que pensam se pode retornar. Uma primeira pauta-se pela seguinte afirmação: “(já) não há revistas de banda desenhada”, o que deve ser antes lido não existirem repetições de modelos editoriais análogos aos de uma forma de fazer, ditar e fruir a e da banda desenhada como num tempo em ela ocupava um lugar privilegiado de instrumento de entretenimento, e não de expressão pessoal ou investigação artística. A resposta a isso é, “existem, sim, mas não são iguais às que procura, veja, ei-las”. Outra passa por um pequeno desvio, relacionado com algumas das diatribes passionais contra o programa VerBd (ver secção dos comentários aqui, ou o a parte que lhe cabe no BDJornal # 20) onde um dos intervenientes afirmou, em detrimento dos autores seleccionados, “quem trabalha não faz relações públicas”, acusando assim esses autores e, por tabela, o entrevistador, de uma espécie de conluio social, pelas redes da amizade e conveniência e não pautado por alguma solidez (a vário graus e naturezas, sem dúvida) de trabalho efectuado, e mais acima de tudo, uma procura por uma qualidade intrínseca, estética e de atitude perante a banda desenhada como modo de expressão, e não como mero veículo (empregue seja em que “função” for). Apenas um exemplo, e que se prende com a Glomp directamente: André Lemos poderá ser um “ilustre desconhecido” entre nós, que nos abandonamos à ignorância e à falta de capacidade de procura individual, e contentamo-nos com felicidades afoitas e famas de praça pública, mas é também um dos autores mais internacionalizados dos portugueses desta geração mais jovem (fins da década de 80 até hoje), se não o que mais trabalho tem em publicações estrangeiras (dessa geração), à qual se junta esta mesma Glomp. Mas essa afirmação, como dizia, deve também ser lida de uma outra forma, encará-la como um grau muito grave de ensimesmamento, em que apenas se pode recorrer ao convívio com os Outros, quando esses outros são o Mesmo; afinal é como ser-se confrontado de facto com experiências de alteridade, seja essa cultural e intelectual, artística, e política, etc., fosse visto não como criação de oportunidades de fortalecimento ou desenvolvimento do Si-Mesmo, mas como ameaça à Mesmidade que se pensa ter alcançado enquanto, ilusória, claro está, “perfeição”. A última dessas afirmações já denota um breve contacto com as publicações, mas um contacto que se estabelece para logo ser negado: “não têm interesse”, o que por sua vez deve ser lido como uma qualidade de medo, não dos trabalhos, mas a de que estes trabalhos levantem uma incompreensão que está dentro de quem os não deseja sequer compreender; pois a mera verificação desta comunidade crescente e internacional que estabelece elos de colaboração e edição, se bem que não prime pela massificação e pela acessibilidade (a vários níveis), revela esse mesmo desejo de construção de comunidade, ao passo que as bandas desenhadas comerciais se pautam somente com uma preocupação de retorno imediato e que espera, as mais das vezes, algum grau de aceitabilidade em públicos internacionais, mas públicos que apenas os consomem pela inércia da maior visibilidade, e não uma opção real e activa.
Voltando atrás, para ligar os pontos todos, portanto, o que vejo ao ser confrontado com a Glomp, e a Kramer’s Ergot, e a Canicola, e a Mesinha de Cabeceira, e a Argh!, e outros exercícios maiores ou menores, de grande ou menor alcance, de pequena ou mais férrea pujança, é um gesto certeiro nessa permanente discussão e aproximação a uma comunidade amplíssima e tangível, erguida pela e unida na partilha estética.

Em muitos aspectos, e repetindo uma fórmula que se encontra em vários locais, a Glomp é comparada, e com propriedade, à Kramer’s Ergot. Como ela, nasce de um gesto antológico de novos e interessantes autores narrativos, que consolidam uma linguagem relativamente inovadora com princípios consensuais do que constitui a banda desenhada em geral, para paulatinamente se aproximar de cada vez mais uma política de radicalismo visual e narrativo, ainda no interior do território da banda desenhada. Tal como a revista americana nos últimos dois ou três números se distancia cada vez mais das suas congéneres, e até de si mesma nos primeiros passos, também estas últimas Glomp (desde o número 7, talvez?), em relação às anteriores, parece mais inclinada a uma experimentação da(s) linguagem(ns). Encontram-se aqui trabalhos magistrais, desde uma pequena banda desenhada tout court do já referido André Lemos, a uma “fuga e variação” divertidíssima de Lamelos, a um dos episódios da saga Power Masters de C.F., à presença fulminante de Tommi Musturi (o editor), de Amanda Vähämäki, Anders Nielsen, Ilan Manouach, Andrea Bruno, Ruppert e Mulot, Rui Tenreiro, ao "estranhamente familiar" das histórias curtas da sul-coreana Lee, Jung-Hyoun (com um exemplo acima), à aparentemente saga violenta infantil de Olivier Schrauwen (mais abaixo), e ainda muitos outros... Uma imensa diversidade de humores e naturezas de trabalho, num imenso livro. E acima de tudo, por mais uma vez, na melhor tradição das boas antologias de banda desenhada contemporânea, porque o gesto editorial de selecção e mise-en-scéne é coeso, multímodo, angariador de leituras diversificadas, desencadeador de novas relações, e mesmo belo, já que o objecto em si potencia o prazer sensual de ler estes trabalhos e de os atravessar com o olhar e os dedos.
Nota: agradecimentos a André Lemos, pela oferta do livro.

Rei. Rui Zink e António Jorge Gonçalves (Asa)


A esmagadora maioria dos textos até agora surgidos e que discutem este livro abandonam-se somente aos aspectos mais jornalísticos, factuais, superficiais e, por isso mesmo, menos importantes para uma efectiva leitura da obra. Ou, por outras palavras, não o discutem. Chegam mesmo a surgir alabanças “apesar de não o ter ainda lido”. Recorrer à obra anterior do autor dúplice implicado, a voz Zink-Gonçalves que havia perpassado pela A Arte Suprema, não ajudará, e muito menos a busca de uma continuidade formal ou mais completamente estética entre os outros livros de A. J. Gonçalves, a solo ou acompanhado, ou os de Rui Zink, e o presente, pela simples razão de que estas ficções apresentam-se como sendo autónomas e não como fazendo parte de uma respiração contínua, ou um poema único, como poderá ocorrer e ocorre de facto noutros casos. Seria relativamente fácil exercitarmos aqui pontos de contacto paralelos entre A Arte Suprema e Rei: a expressividade do Eu pelo Outro, ou pelo seu próprio Alter-ego; a presença de um Oriente transfigurado em plataforma de ficções outras; a presença hodierna dos complexos político-financeiros como alvos de pequenas diatribes “engajadas” (em todo o seu sentido, inclusive demodé) contra a real-politik... Mas isso não nos levaria senão e ainda ao comentário mais superficial, e que não daria conta do “esvaziamento sígnico” de Rei. Essas interpretações não surgem apenas da parte dos seus leitores (mais ou menos qualificados e glorificados), mas da parte dos seus autores (que, enfim, como soe dizer-se, são os seus primeiros leitores). Seria interessante, por exemplo, rebater as afirmações dos próprios autores em relação ao livro, uma vez que em várias oportunidades eles salientaram o facto deste ser um “livro de silêncios, com poucas palavras”; mas na verdade é precisamente o contrário: são muito menos as pranchas sem texto verbal, e as mais das vezes associadas às alucinações (superficiais ou mais profundas, como se entenderá da narrativa) de Nuno, o protagonista, e muitas vezes sendo o texto o que veicula os significados acabados da diegese, remetendo-se a imagem à transmissão de acções ou ambientes.


O livro narra de uma forma relativamente simples uma aventura muito banal dos viajantes que se dizem “procurar a si mesmos” em paragens exóticas, de que o “Oriente” se constrói sobremaneira: Nuno pretende alcançar um certo grau de independência e maturidade em relação à sua mãe, que percebemos ser uma mulher influente na sociedade portuguesa; como havia aprendido karaté e lições meio-cozidas do “espiritualismo oriental”, pensa que será no Japão (“a fonte”) o local onde (se) encontrará a resposta. Rapidamente nos apercebemos de que esse grau de independência é nulo, de que Nuno vive nas dobras das saias da mãe, desejando a um só tempo dela(s) se libertar e de ser depositário da sua máxima atenção e amor. Por seu lado, a mãe desencadeará uma busca pelo seu filho depois deste aparentemente ter “desaparecido”, recorrendo aos serviços do seu antigo mestre de karaté, Tano. No fundo, a mulher que é representada como fria, distante e auto-suficiente, e que chega mesmo a ser visualmente comparada com a Rainha Má da versão Disney da “Gata Borralheira”, acaba por se mostrar uma mãe como as outras: frágil, genuinamente preocupada e revelando várias camadas de humanidade (sendo a de mulher passível de se apaixonar uma delas). Estas duas buscas – a de Nuno e a da sua mãe Teresa – são contadas alternadamente, numa fórmula clássica de acções paralelas. No entanto, o complexo de Édipo não se submete aqui a grandes convulsões de diferença; é mantido, ainda que fragmentado em dois caminhos que se fingem não querer unir. Para vincar ainda mais as distâncias entre essas duas linhas de narração e, no fundo, de dois “mundos” recorre-se a registos visuais diferenciados. Na “linha do Nuno” seguindo-se num carácter mais estilizado, mais próximo dos “bonecos” ou de uma mangá mais comercial, com as figuras de corpos arredondadas, olhos grandes, movimentos repentinos sublinhados por linhas, um maior grau de fantasia e metáforas visuais, muitos elementos derivados de um imaginário tecnológico e popular associado ao Japão (jogos de computador, as máquinas de pachinko, o cosplay e as modas de “faz-de-conta” de Harajuku, os grupos de J-pop, etc.), estruturações das pranchas menos regulares e mais espectaculares. Na “linha de Teresa”, opta-se antes por um traço bem mais contido, realista, de contornos e jogos de sombra e luz pautados por regras de naturalismo, uma submissão à lógica do mundo, uma composição de pranchas mais sóbria, diálogos mais ritmados, com mais referências ao mundo “real” e “adulto”, e que relevam de facto duas personalidades conversando (Teresa e Tano).

O ponto súbito de reconhecimento e de desenlace da história, que une finalmente estas duas linhas, desvia-se porém para um universo de referências da ficção científica e logo se desvia ainda mais para um vago final, que tanto pode beber do fantástico como do maravilhoso, mas que não me parece fazer jus às personagens entretanto construídas: é como se fosse uma fuga para a frente e se evitasse devolver as personagens aos seus caminhos desenvolvidos. Há quem queira ver aí uma “obra aberta”, o que é aceitável até certo ponto. Mas uma vez que essa abertura não foi sendo garantida pela narrativa restante (o que sucede, por exemplo, em Horace Dorlan desde o primeiro momento de crise), apenas se vislumbra aí uma irresolução disfarçada em metamorfose das personagens envolvidas.
Um dos mais maravilhosos (isto é, que produz maravilha, “que provoca pensamentos sobre”) livros sobre o Japão ou por entre o Japão que conheço é L’Empire des signes, de Roland Barthes, que (digo-o eu) é uma espécie de romance erótico, quer no seu sentido de movimento quer no de encontro amoroso, sexual, violento. As relações entre o texto, as famosas leituras “mitológicas” de todos os sinais do mundo por Barthes, e as imagens por ele captadas ou compiladas são explicadas pelo mesmo: “Le texte ne ‘commente’ pas les images. Les images ‘n’illustrent’ pas le texte: chacune a été seulement pour moi le départ d’une sorte de vacillement visuel, analogue peut-être à cette perte de sens que le Zen appelle un satori; textes et images, dans leurs entrelacs, veulent assurer la circulation, l’échange de ces signifiants: le corps, le visage, l’écriture, et y lire le recul des signes”. Os sublinhados são meus, pois por “vacilação visual” e “entrelaçados” entendo essa qualidade do produto da simbiose existente entre a parte do verbo e a parte da imagem, e a qual se verifica extraordinariamente na banda desenhada (ou a um campo alargado a que esse nome serve). E é por essas razões que as duas fotografias do actor Kazuo Funaki que abrem e fecham o livro podem ser vistas como os limites de todo o livro, não somente por um arranjo gráfico e editorial, mas como se todo o movimento (erótico, portanto) do livro fosse levar o actor, o recipiente do convite do rendez-vous de Barthes, a sorrir. O que se encontra, portanto, é um equilíbrio total entre os pequenos fragmentos aparentemente desunidos, e o todo, fazendo emergir de uma aventura semiológica sobre um mundo pleno de “signos vazios” um romance amoroso.
Ora, em Rei, não só as ligações amorosas (entre Teresa e o filho, entre Teresa e Tano, para ser mais preciso) não se satisfazem, como se nota algum grau de separação entre o trabalho de escrita e o de desenho. Ou por outras palavras, o divórcio nota-se por excesso. Recorrendo a Walter Benjamin, ou melhor, a uma lição de Maria Filomena Molder sobre Benjamin, na discussão sobre os espaços criados, em qualquer obra de arte, entre os teores de verdade e os materiais, poder-se-á afirmar que “quando o conteúdo material se destaca de tal maneira que toma a dianteira parece que o conteúdo de verdade se dissolveu e nós só temos a estranheza do que foi vencido pela passagem das horas”. É o que aqui sucede, enfim. Não há uma união subterrânea entre as duas vontades, para que os acidentes do terreno, isto é, a obra, a sua parte visível, legível, interpretável, se apresentem em harmonia com ela mesma. Surgem no seu tremor de incumprimento, de deslize periclitante. Permite o repreensível, o não desejável na obra, que é a separação – fictícia, e abstracta, seguramente, mas por vezes apreciável – entre forma e conteúdo. Daí que fale de divórcio, como poderia referir-me a um desentrelaçamento, ou à falta de vacilação das duas presenças (que nada têm a ver com os autores empíricos, mas com as dimensões necessárias da banda desenhada), antes surgindo dois territórios quase separáveis. É desse equilíbrio que são feitas as obras na qual a coesão é conseguida. Todavia, não conseguimos vislumbrar esse mesmo equilíbrio nem essa coesão em Rei.
Parece-se mergulhar aqui de uma forma directa e dúctil sobre os “signos vazios”, de que Barthes também fala, signos sobre os quais se poderão exercer poderes menos ou mais criativos, subjectivos, responsáveis... A ductilidade desse gesto cabe quase totalmente à parte visual de Rei, no seu constante uso de toda uma série de registos gráficos, de “tons” de figuração, de estratégias de composição de prancha, de confronto entre as camadas de informação existentes na obra, a que já nos referimos parcialmente. Se é esta uma estratégia “arriscada”, “audaz”, ou até, como surgiu nalguns locais – inclusive da parte da editora – “experimental”, duvidamos muito, pois o peso da legibilidade e dos trâmites mais clássicos da narrativa e da representação não se encontram em crise, bem pelo contrário, são sustentados claramente. Mas esta afirmação não visa um perjúrio à qualidade do trabalho conseguido; somente uma maior precisão e justiça em termos estéticos. O Senhor Abílio, por exemplo, de António Jorge Gonçalves a solo, apesar de ter nascido de uma relação comprometida, de encomenda comercial, trabalho regular e outros tipos de demarcação, acabou por se tornar num livro autónomo e o de maior arrojo do artista, a todos os níveis.
O Japão que aqui surge não é – nem tampouco seria esse o desejo dos autores, presume-se – real, histórico, e muito menos um Japão turístico, ou místico. Mas não deixa de surgir como um aglomerado de sensações rápidas e usuais, alcançáveis a partir de um mero passeio pelas referências mais conhecidas do Japão moderno. As dicotomias construídas – eu e o Outro, a identificação com um Outro mais caracterizado (e sexual) por oposição a um Outro mais descaracterizado (Ocidentalizado), o sublinhar das aparentes contradições culturais entre um país votado ao Shintoísmo mais ritualizado ao mesmo tempo que se dedica às tecnologias mais avançadas e despersonalizadas – não deixam também de ser pouco profundas e, o mais importante, por apenas contribuírem para um ambiente geral onde decorre a acção e não por se tornarem num aspecto actante sobre a narrativa. A fábula, em si, poderia ser deslocada em termos de preenchimento actual (um outro local, uma outra personagem), que não perderia a sua caracterização geral; funcionaria à mesma. Todavia, isso leva novamente à ideia de esvaziamento dos signos que percorrem estas páginas, ecoando precisamente a leitura que Barthes havia feito do seu séjour pelo Japão.

Rei tem momentos formalmente poderosos, como a cena de Tano a comer caracóis numa taberna portuguesa, com um amigo; ou momentos de diálogos de grande solidez, como os que decorrem entre Teresa e Tano. Não obstante, em termos gerais, Rei apresenta-se (até mesmo o formato do livro lembrarão alguns leitores dos tankobon, ou dos volumes da colecção Sakka, remetendo a partir dessa dimensão para o universo até mesmo físico e comercial das mangá - e reforçada essa dimensão através de novas estratégias, publicitárias e mercantis) como uma obra diferenciadora no panorama português, como uma promessa de experimentalismo e arrojo que na verdade não é o seu caminho. É antes a de uma obra despretensiosa, que permite contar uma história das relações de um rapaz que foge procurando aquilo de que foge e da sua mãe que procura (e encontra?) aquilo de que mais desejava, no fundo, fugir. E cuja diferenciação interna, gráfica, mima essas duas vontades contraditórias, mas indómitas, serão coroadas, no fim, com algum grau de sucesso, mesmo que esse sucesso nos escape.
Se assim for apresentado Rei, descomprometidamente, então cumprirá essa sua promessa, e o esvaziamento dos signos internos ao livro tornar-se-ão uma fortaleza da sua construção. Se for avançado como uma aventura autoral de diferenças extremas para com a banda desenhada, mesmo portuguesa, não atingirá esses objectivos publicitados, e o esvaziamento transbordará para a própria obra, em seu detrimento. O seu a seu dono, e a precisão humilde que garanta um lugar certeiro.

22 de novembro de 2007

Prémio Literário Cidade da Figueira da Foz 2007.


É raro que utilize este blog como plataforma de divulgação e notícias, uma vez que existem outros canais bem mais atentos, profícuos e competentes que este para o fazer, em torno da banda desenhada, ilustração e territórios aparentados. No entanto, reservo-me ao direito de o fazer perante eventos que terão, à partida, uma menor capacidade de chegar rapidamente onde de direito. Assim, anuncio-vos que o Prémio Literário Cidade da Figueira da Foz deste ano está aberto em exclusivo a projectos de banda desenhada. Poderão encontrar o regulamento no site da Câmara Municipal da Figueira da Foz (www.figueiradigital.com), ou pedir-mo por email. Escuso-me de explicar os pormenores, estando eles explícitos nesse regulamento, mas parece-me uma boa oportunidade de tentar a sorte e, quem sabe, desenvolver-se um trabalho com alguma visibilidade.
Como depreenderão pela imagem, há um tema obrigatório: trata-se da resistência na Figueira ao exército de Junot, aquando da Invasões Francesas - daí que o Forte de Santa Catarina surja na imagem, sendo esse o palco da "reviravolta" do poder francês... e que depois serviria de palco à entrada dos "aliados" ingleses (e a "Invasão Inglesa", menos consensual historicamente mas não menos real, diga-se de passagem).
A Câmara disponibilizará documentação que poderão encaminhar os autores interessados em dar início à investigação que levará, por sua vez, à apresentação de um projecto consolidado, mas não me parece que exista uma obrigatoriedade em criar um livro "escolar", havendo toda a liberdade para, a partir destes dados concretos e históricos, se desenvolver o maior grau de criatividade possível.
O Júri será composto por três pessoas, e mais uma pessoa representando o Pelouro da Cultura camarário. Esse Júri contará com um especialista em História Militar, um representante da Bedeteca de Lisboa e este vosso criado. Pugnarei, por meu lado, a que a obra escolhida seja a que se apresente como o projecto mais consolidado e dado à prossecução do que prometer nesse primeiro passo... Bom trabalho a todos!

20 de novembro de 2007

Campo di Babà. Amanda Vähämäki (Canicola)


Importa-me começar por uma qualidade de Campo di Baba à qual poderíamos dar o nome de “leveza” ainda que exerça um peso considerável em toda a obra. Há como que uma impressão, uma sensação provocada nos sentidos, portanto superficial, que logo se imiscui e reverbera no interior do livro, no seu mais íntimo: trata-se da ideia de uma fragilidade, ainda que apenas aparente. Mas é uma impressão que de perseverante e nada anódina se torna uma verdadeira impressão, isto é, deixando uma marca, constituindo-se como a marca da obra. Não deixa de ser uma impressão formal, uma ilusão material, mas que lhe confere uma natureza lábil que é continuada, ecoa ou na obra se funda. Os desenhos são a carvão, e concorrem em cada vinheta os contornos seguros das personagens, as tramas pouco regulares que compõem as sombras, os pêlos e cabelos, as partes escuras das representações, traços mais leves que constituem os cenários e objectos secundários, os balões e textos, linhas de movimento ou de impacto, e ainda, e eis o de mais importante, por ser o mais diferente (ainda que não original, que é uma questão muito diversa), haver a presença das correcções, de vestígios mal-apagados de outros desenhos, primeiros esquissos ou tentativas da representação das personagens e suas acções: e esta mesma qualidade não aumenta nem o nível de ruído (por poder apontar para algo que não deveria passar na “comunicação” ou por apontar a um “erro, que se deveria disfarçar) nem o peso, mas bem pelo contrário, aumenta-lhe a leveza a que me referi ao princípio. Deverá ser óbvio que me informo aqui na qualidade do mesmo nome a que Italo Calvino se referiu nas suas Norton Lectures, em cujo ensaio, referindo-se ao mais famoso romance de Milan Kundera, indica “que na vida tudo o que escolhemos e avaliamos como leve não tarda a revelar o seu peso insustentável”. A que tudo se refere o autor italiano? A que “coisas”? Talvez pudéssemos responder, e aproveitando a leitura do livro de Amanda Vähämäki, que se tratarão de elementos como os sonhos, as esperanças, coisas impalpáveis mas inerentes à vida humana, e passíveis de serem transportados pelos instrumentos dos artistas, palavras, linhas, formas, sons, e que se constituirão em música, pintura, romances, bandas desenhadas. (Mais)

10 de novembro de 2007

já não há maçãs no paraíso. Max Tilmann (Mmmnnnrrrg)


Se a maçã (do Paraíso) deve ser entendida como não somente o fruto proibido mas como aquele fruto que nos daria acesso ao conhecimento do Bem e do Mal, ou seja, um Verdadeiro Conhecimento, e portanto Para Além do Bem e do Mal, então poderemos ler este título de ecos tão bíblicos quanto o anterior como indicando ser possível um retorno ao Paraíso, através, quiçá, da sua reconstrução na terra, permitida pela tecnologia (um Paraíso 2nd life?), mas no qual jamais se poderá esperar reencontrar esse acesso, pecaminoso ou não. Não é possível saber. Tudo nos é permitido, mas é-nos vedado ser.
Lucrécio cria que dos objectos, das coisas, se libertavam membranas que nos vinham aos olhos para nos dar as suas formas, apontado-nos para uma outra maneira de “ver”, táctil. A epígrafe de Blake, neste livro, “O que é o Homem?/Toda a Luz que o Sol mostrar/Depende do nosso Olhar” (e no texto inglês o sentido dúbio é marcado quer pelo pronome em “The Sun’s Light when he unfolds it”, pois “he” pertencerá ora ao Sol ora ao homem, quer pelo verbo “unfold”, que implica uma acção táctil, de toque, processual – e que é mimada pela nossa acção de leitor quando viramos as páginas do livro, desdobrando-lhe o sentido, criando-o – e ainda pelo facto de se sublinhar a existência de um “órgão” que observa), permite voltar a essa observação-pelo-toque. É aí que surgirá a diferença do “olhar” e da “visão”, que José Gil explora em A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções: “O olhar não se limita a ver, interroga e espera respostas, escruta, penetra e desposa as coisas e os seus movimentos”. Max Tilmann cria objectos (desenho) ou um objecto (um livro com uma série articulada de desenhos) que nos obrigam a olhar, que vêm ao encontro do nosso olhar e o obrigam a pensar.
Antes do mais, é importante que se proceda a uma descrição deste objecto, não para explicar o livro, ou pior, esperar explicitar o tema, mas antes para evitar mal-entendidos: unfold/desdobrar para fold-with/com-plicar, esclarecer para (nos) enredar. já não há maçãs no paraíso, após a epígrafe e uma folha de rosto, é composto por duas séries paralelas, apresentadas intermitentemente: uma primeira onde confluem desenhos ora de traços finos, apenas contornos, ora de traços grossos, manchas e traços a pincel, por vezes representando outras imagens, que se sobrepõem, linhas raiadas, balões de fala ora vazios ora preenchidos por um muito característico trabalho do autor de tramas apadronizadas, cabeças flutuantes, símbolos, reconhecíveis ou não. Tudo, sempre, sempre, ocupando quase toda a página, a preto e vermelho, e acompanhado de um texto, uma, duas palavras, a que se poderia chamar de nome ou título (“aborto clandestino”, “cancro”, “violência doméstica”, “refugiados”). A segunda série é composta por desenhos também de linhas finas, quase desconexas no interior dos seus contornos que desenham formas humanas, no que poderíamos entender como as várias possibilidades do encontro sexual.
Encontrar-se-á uma certa ordem, ordenação, composição, progressão, em ambas as séries, independentemente de estar ou não relacionado com um efectivo modo de produção (consciente, diríamos, se caíssemos nessa esparrela facilitista) do autor, que não podemos interrogar senão através da obra. A primeira, a das “crises da humanidade” inicia-se de um modo complexo, como toda a concorrência das formas atrás descritas a cada página, como que se sobrepondo várias formas de representar a “crise” indicada: no caso da pena de morte, poder-se-ão reconhecer quatro tipos de execução, sendo uma delas o que parece ser a crucificação, aliás, o descer da cruz de um corpo, adivinha-se... Estas sobreposições parecem aumentar de modos cada vez mais cerrados e completos (veja-se “deliquência juvenil”) para subitamente explodir e voltar a uma forma condensada: as seis últimas crises (a saber, “exclusão social”, “mendicidade forçada”, “repressão sexual”, “consumo e obesidade”, “estigmas físicos” e “estigmas sociais”) apresentam-se somente como personagens a contornos simples que encerram fortes manchas a negro – o tecido que cobre os corpos – e manchas a vermelho – as partes do corpo a descoberto, as mãos, a cabeça), precisamente por serem crises que não se partilham sob a forma de confronto, ou de partilha, mas de um sofrimento que se dá na solidão (quase ou mesmo) absoluta.

Também a outra série, a dos “encontros sexuais” se apresenta com séries internas: tarja preta, tarja vermelha, parceiro a negro, contorno geral vermelho suave, contorno geral vermelho obtuso, mas não parece haver qualquer correspondência interna entre essa tipologia formal e a das “posições” representadas (se bem que pareça existir uma maior regularidade, de 5 imagens cada série, com duas excepções por excesso e por defeito). Estes desenhos em particular são mais raramente preenchidos por pinceladas grossas de negro (com a excepção de uma das séries internas), ou ao lado das quais paira uma mancha vermelha, ou em cuja margem se espraia uma superfície de tramas e manchas carregadas, aparentemente sem relação directa com os actores representados. Digo actores, mas apenas em termos gerais lembrarão corpos humanos, mas são-no, apesar de tudo. E não há qualquer texto. São, por assim dizer, “silenciosos”. Há qualquer coisa de incómodo nesta segunda série, e nada tem a ver com a “pornografia” a que superficialmente parece apontar. Radicalmente ao contrário, estas imagens mergulham (“cavam”) na tradição do feio ou do grotesco; são anti-eróticas. Se sexualidade existe, é diminuída à sua mecanicidade animal. Isto nada tem a ver com o “choque”, nem sequer, ou muito menos, em termos de “choque moral”, é um mergulho na sexualidade para a evitar.
As cores insistentes e do jogo de Tilmann, vermelho, negro e branco, fazem-me recordar um poema de Camilo Pessanha, um dos mais famosos, Branco e Vermelho, e com o qual se podem descobrir afinidades (para além da falsa dicotomia das cores): há um pequeno ciclo de repetições cuja insistência num mesmo sentido, quase sem desvios, mais do que procurar provocar diferenciações internas, aturde o seu sentido original, como a uma sensação que, repetida até a exacerbação, se dissipa na insensibilidade. Esta aparentemente simples, superficial e nominal enumeração de “problemas” e “crises” da humanidade parece apontar em duas direcções morais, ou melhor, da moralidade: por um lado, a mais banal das indicações desses problemas, como surge aqui e ali em campanhas, slogans, verdadeiros produtos da solidariedade, meras modas que vão sendo substituídas à medida que as novas surgem...; por outro, decorrendo daquela insensibilidade que emerge pela estimulação excessiva, a sua completa dissolução. Nomear, repetida e superficialmente, não é dizer a coisa, mas antes arrancar-lhe o direito de nome. Retornando a Pessanha, parece refazer-se a imagem do poema, o “tema” de Tilmann: “Da insigne dor humana.../A inútil dor humana!” (meu sublinhado).
Já não se trata de “acabar com o juízo de Deus”, como diria Artaud, pois Deus perde o seu lugar neste segundo passo de Tilmann (já o havia perdido nos campos de céu aberto do livro anterior, mas restava-lhe a sombra), mas de encontrar estes cartuchos vazios, estes nomes, estes programas, desprovidos de interior, e estes corpos engalfinhados uns nos outros mas sem quaisquer paixões, encontros, sem alma. O Paraíso é de certo modo tangível, mas Deus dele se ausentou (ou nunca lá esteve e apercebemo-nos agora do vazio), e as maçãs, se o forem, serão apenas frutos envenenados e não acesso à beatitude. “É a hora da morte e à hora da morte tudo é possível ser-se. É a hora da morte e jamais o homem morreu como hoje”, escreveu Virgílio Ferreira. Max Tilmann pensa, pelas imagens, o mesmo, mostrando para além das formas das mortes a natureza dessa mesma morte. Porque no fim, no fim de tudo, de todas as dores repetidas, de todas as morais marteladas, e para além de tudo, que resta? Pessanha, ainda: “Não sinto já, não penso”.
Nota: Agradecimentos a Marcos Farrajota, pela oferta do livro, a Tiago Manuel, pelo livro em si, a Sara Figueiredo Costa, pela leitura do livro.
Nota final: para a compra de um exemplar, aconselha-se a distribuidora Chili com Carne.