28 de maio de 2007

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Question for all Comics Scholars and Curious Hunters too.
Thank you all!

20 de maio de 2007

Pig Tales/Cartoon Workshop, Ninja e Wunderground. AAVV/Fort Thunder (EEVV)


Há uma certa tendência, que tem vindo a ser alimentada nos últimos dez anos, em rasgar quaisquer limitações possíveis na apresentação do desenho (e aqui incluir-se-ão as áreas ou disciplinas, mais regradas, da banda desenhada e da ilustração) para um território sem quaisquer finalidades ou uma obrigatória assunção de um sentido último. Se bem que as raízes podem ser encontradas em toda a História, talvez os pontos nevrálgicos do(s) movimento(s) Dada e a geração norte-americana despertada pela Raw sejam centrais numa visão linear de “evolução” ou “fontes”. Esta tendência está presente em variadíssimas frentes, em França no atelier Le Dernier Cri, no Canadá presentes numa antologia recente, Nog a Dod, editada por Marc Bell, em Portugal numa cena semi-dispersa semi-concentrada no Porto. E nos Estados Unidos, centro da atenção presente, na “cena de Providence”, da qual emergiu o colectivo Fort Thunder, aos quais se associam algumas das publicações já discutidas aqui. Recentemente, foram editados três títulos relacionados com essa “cena”: Ninja, um enorme volume de banda desenhada de Brian Chippendale, um novo volume de Paper Rad, e um catálogo do movimento.
Falei da Raw, mas deveria, sobretudo no caso de Chippendale, de começar a citar mais especificamente o nome de Gary Panter, com quem partilha afinidades e cujo nome é citado vezes sem conta na apreciação do seu trabalho. Que Panter seja uma figura tutelar não é nenhuma surpresa. Nem um mistério oculto, já que são dele as palavras do prefácio de Wunderground, apadrinhando assim abertamente esse projecto. Os pontos de ligação são, a um ponto, estilísticos: um frenético e cabal preenchimento da página, a apropriação de toda uma série de ícones e figuras da cultura popular (banda desenhada e desenhos animados infantis incluídos, o que é importante, como veremos), uma continuidade da acção desprovida de elos de causa e consequência, procurando uma dissolução da causalidade através de um cego movimento de progresso, o cruzamento de vários estilos ou modos de desenhar, provocando uma estranheza na falta de unidade e antes a convivência e a ambiguidade da comunicação possível entre essas diferenças. A leitura de Ninja, de Brian Chippendale, é praticamente impossível de fazer sem entender as sombras projectadas pela trilogia de Jimbo.
Existem, porém, diferenças, que nalguns patamares apenas elevam ainda mais Panter aos píncaros de um experimentalismo olímpico, e algumas das experiências do colectivo do Fort Thunder como irresolutas. Em Dal Tokyo, de Panter, tínhamos uma progressão de vinhetas, tiras mesmo, que fariam pensar nas estruturas típicas desse tipo de banda desenhada norte-americana. Mas a “estória” não existia, passando-se de imediato a uma dissolução da narrativa que importava antes entender como uma sucessão de memórias e referências da mente de Panter, referências algumas fáceis de repescar, outras obscuras, e cujo exercício se tornaria potencial nos livros, Inferno e Purgatory, onde a cultura erudita se torna pasto para essa sua acção.
Não. Não se trata de surrealismo ou coisa que o valha. Trata-se de uma regra de construção absolutamente livre, descomprometida com uma vontade ulterior de “sentido”, a qual, se quiserem, estará mais próxima, repito, dos jogos humorísticos da primeira geração dos Dada. É esse “sentido” abandonado a que se retorna nos projectos de Paper Rad, especialmente neste Pig Tales (em que acompanhamos o dia-a-dia de uma banda feminina de pop rock, constituída por porquinhas) e Ninja (cujo protagonista é, óbvio, o titular do livro).
Em Ninja [Picture Box Inc./The Ganzfeld, capa acima] convergem toda uma série de dispositivos narrativos regulares de um determinado universo da banda desenhada: não só histórias de artes marciais, como grandes aventuras (atravessando estranhas e misteriosas cidades, cruzando-se com criaturas fantásticas, descobrindo maravilhas da magia e da técnica), como ainda um profuso imaginário associado aos grupos de super-heróis dos anos 70 e 80 (Kamandi, os Defensores, os Vingadores, Punho de Ferro e quejandos; mais, este imaginário nostálgico não é novidade, tendo em conta a publicação especial Coober Skeber Marvel benefit, na qual os artistas de Fort Thunder e muitos outros apresentam versões muito próprias de todas as personagens desse universo). Não se trata apenas de uma questão de “caça às fontes”, mas de uma apropriação (em termos artísticos) para um seu emprego novo. No entanto, ao passo que a apropriação feliz tem a ver com uma eficaz desterritorialização do objecto original, Chippendale apenas o desvia uns escassos centímetros do palco primeiro. Ninja, não obstante os seus aspectos formais e superficiais, é lido enquanto um texto de “bd de aventura”. Aí reside uma sua fraqueza face às promessas anteriores, quer do próprio grupo em que Chippendale se inscreve quer do que havia sido inaugurado por Panter.
A nostalgia a que me refiro está presente não só nestas referências como na inclusão, esparsa e intercalada com os episódios “modernos” de Ninja, de pranchas feitas por Chippendale quando tinha cerca de 12 anos. São pranchas também divididas em vinhetas regulares, desenhadas à régua, e que mostram uma breve sequência de acção do Ninja contra os seus inimigos, em várias missões nas quais, invariavelmente, tem de conquistar um objecto ou tesouro. O desenho é tão banal quanto idêntico ao de milhares de crianças da mesma idade. Formas mais ou menos inflexíveis dos corpos das personagens, uma figuração que apenas se diferencia entre si por atributos exteriores como máscaras, armas, extensões dos poderes (veja-se a imensa lista de personagens incluída), uma estrutura linear de acção-reacção... Mais, as personagens ocupam quase sempre um espaço que fica em baixo ao centro da vinheta, onde o espaço é representado por uma outra linha recta para o chão e talvez uma ou outra mínima informação para um exterior ou um interior. O foco de visão é sempre o mesmo, sem quaisquer variações, como se fosse uma câmara fixa ou um longo travelling. Nesse sentido, formal apenas, dá-se uma associação aos jogos do fim dos anos 70 e princípio dos anos 80, especialmente o que se conhece como “platform games”, do ZX Spectrum, Nintendo, Atari ou das máquinas de vídeo-jogos - Manic Miner e Donkey Kong eram favoritos entre nós: são uma claríssima referência (repetida, ainda que diferentemente, nos outros títulos aqui discutidos). Para além dessa estratégia visual de continuidade e acção imparável, também presente nos novos episódios, emerge mais uma vez a carência de estruturar a psicologia das personagens, optando-se antes por esta sua transformação em nódulos functivos da acção a decorrer (um pouco como o que sucede em Yokoyama). Esses espaços transmutam-se, nos episódios “modernos”, em várias cidades (legíveis como “níveis” na gíria dos jogos-vídeo, ou como “reinos”, no do imaginário do high-fantasy post-Tolkien que não deixa de estar também presente, com todas as criaturas diversas, os poderes, e os atributos... é como se a geografia alienígena de Teratoid Heights de Brinkman ganhasse em Chippendale novamente uma finalidade).
A criação e fruição das pranchas (as “modernas”) deve ser feita, de acordo com as palavras do autor, em “cobra”, isto é, lidas da esquerda para a direita na primeira fila, descendo imediatamente para a vinheta debaixo da última e da direita para a esquerda e assim sucessivamente (veja-se aqui um exemplo mal scaneado de metade uma prancha). Na verdade, a palavra certa é boustrophedon, sendo um sistema de escrita antigo mas que viria a cair em desuso. O que este sistema permite, em termos de escrita e leitura é uma economia de meios e de tempo e um aceleramento, quer do acto da leitura quer da visualidade implicada, que se multiplica ou exponencia pela presença de uma carga informativa poderosa (pormenores, padrões carregados, muitas personagens, textos crípticos, etc.). Este tema da aceleração do olhar foi lançado nesta fórmula por Balzer no último número da Satélite Internacional, falando sobretudo dos livros saídos do Dernier Cri, mas associando-se a Panter também, o que nos permite estas associações contínuas e quase circulares. O que se pretende não é uma acalmia do olhar, uma observação ponderada e reflexiva de uma imagem parada, mas antes uma transpiração e uma ênfase vertiginosa (que rima com os exercícios e as atitudes inerentes ao tipo de música – noise – que o autor preconiza; v. em baixo).
Cartoon Workshop/Pig Tales [Picture Box Inc./Paper Rad] é um livro duplo. Tem duas capas e podemos ler ora por um lado ora pelo outro, até ambas as linhas se encontrarem no centro do objecto-livro (estratégia excelente para narrativas simples, como tentámos, a Koh, Eun-Kang e eu, no zine infantil Uma porta serve...). No entanto, não se tratam de duas “metades” que se complementam num todo, mas unidades individuais e autónomas. Já descrevi Pig Tales, e como seguimos as vidas dos membros da “all-girls” Lap Band. Cartoon Workshop tem um título claríssimo em relação ao seu programa. Coligem-se aqui pequenas histórias, por vezes de apenas uma página, ora a cores ora a preto e branco, as maiores apresentando algumas das personagens (ou versões delas) com que já nos havíamos cruzado em B.J. and da Dogs ou no site, nos vídeos, etc. As histórias menores são reminiscentes das anedotas de uma página ou meia-dúzia de vinhetas que encontraríamos (nós, leitores portugueses) na última página das revistas da editora brasileira Abril, em títulos baseados nas personagens do estúdio de animação Hanna-Barbera (identificam-se aqui o Manda-Chuva/Top Cat, o elefante Tantã, o jacaré Uóli/Wally Gator, o Magro/Abbott, e ainda os Marretas e o Boris de Alceu e Dentinho/Rocky and Bullwinkle). Mas também para além desse quadro de referências, são identificáveis as presenças de personagens que derivam de brinquedos e bonecos, desde os Trolls ao Gumby e ao boneco dos M&Ms, do Potato Man a tudo o que é possível moldar com o brinquedo mais fabuloso e nojento alguma vez inventado, o Blandi Blub.
Não cito todas estas referências por mero acaso ou para tornar a caça mais rica, mas por uma razão mais profunda. Para além da sua presença (ligeiramente transfigurada) nas bandas desenhadas, algumas destas personagens surgem em desenhos soltos que pontuam as histórias, o que apenas serve para reforçar ou pelo menos, mais uma vez, ecoar este pequeno gesto de apropriação nostálgica do que são provavelmente referências da infância, e que se verifica quer no catálogo quer em Ninja quer neste livrinho.
Todas estas referências, os jogos-vídeo, os livros da Marvel dos anos 70 e 80, um determinado grupo de brinquedos, etc., tudo aponta, portanto, para um determinado ponto do tempo do desenvolvimento e de influência na vida dos autores aqui englobados. Um ponto que se arrestou, por assim dizer, não impedindo um restante desenvolvimento, sobretudo das capacidades criativas e de reinterpretação, mas como uma espécie de território de obsessão e fonte de elementos prêt-à-porter. Não só esses elementos ajudam a despoletar um caminho criativo como surgem enquanto “nós de viragem” ou “funções” que impelem a acção sempre em frente... São raras as analepses, prolepses ou desvios em relação à acção do episódio (mas ocorrem); as acções paralelas são, pelo menos em Ninja, tantas e tão confusas, numa profusão de unidades narrativas, que quase leva à disrupção de uma ideia de narrativa. Todavia, há um aspecto que redime toda esta quase-total depauperamento. Quer dizer, há uma ponta única nesta progressão febril que nos permite desconfiar que todo o Ninja não se fecha somente num exercício virtuoso e superficial de “preencher a folha branca” (curiosamente, em Wunderground, numa entrevista a Sasha Wiseman, faz-se um paralelo entre os estilos gráficos dos artistas com os seus talentos musicais específicos: Brian Chippendale toca bateria e de uma maneira frenética todavia melodiosa, também: dúvidas?). Parece que as coisas só fazem sentido num termo reduzido de aventura, de progressão contínua, de profusão caótica, mas a cerca de meio da grande aventura, começam a despontar pequenos episódios, com o que parecem ser personagens de terceira categoria face aos “heróis” e aos “grandes das cidades”, para se debater, ainda que de um modo enviesado, um tema que Chippendale conhece de primeira-mão: o processo de rejuvenescimento e desenvolvimento urbano conhecido por “gentrificação”, que consiste no apagamento de zonas velhas e pobres, mesmo que históricas e culturalmente significativas, em nome de uma subida de preços imobiliários. A experiência do artista está nos vários edifícios industriais que foram ocupados por ele e os seus companheiros durante largos anos, inclusive o colectivo Fort Thunder, e que seriam demolidos pelas novas políticas municipais. A história dessa vivência, luta e transformações está presente no catálogo Wunderground. E tornou-se matéria de trabalho ficcional em Ninja. Se bem que o modo como Chippendale lida com esse problema sócio-económico esteja longe das estratégias mais anarco-cooperativistas e directas dos artistas que se aglomeram em torno da World War III, debate-se a mesma crise instalada pelos poderes instituídos, expressos através dessa transfiguração, através deste tipo de fantasia. E quando a cidade entra em guerra com uma outra, que a invade na forma de uma torre, e se seguem políticas de re-registo dos cidadãos, e até se dá um episódio de torturas várias (no. 68), julgo que as associações com a realidade recente são claras (e tendo em conta tratar-se da cidade de Groin, “virilha”, a sua leitura e interpretação humorística também).
Wunderground: Providence, 1995 to the present [RISD Museum/Gingko Press] é um catálogo de duas exposições-irmãs que tiveram lugar em Providence, a cidade onde existiu o Fort Thunder, o grupo de artistas que albergava e ainda outros movimentos análogos, companheiros, rivais, etc. quase todos envolvidos na Rhode Island School of Design (de onde saíram também os Talking Heads). A exposição era constituída por dois núcleos, sendo o primeiro de centenas de posters e flyers (Providence Poster Art) dos concertos, teatros, e lutas de wrestling havidas no seio desta comunidade artística, o segundo por uma série de instalações e ambientes (Shangri-La-La-Land) criados por um núcleo duro de artistas, entre os quais os nossos mais conhecidos Mat Brinkman, Brian Chippendale, Jim Drain e Leif Goldberg. Sem surpresa, o catálogo apresenta esses posters e flyers, fotografias dos concertos e outros eventos, imagens das instalações antigas, dos espaços de trabalho e da exposição que apresenta; dois textos de apresentação, uma entrevista que contextualiza a “cena”, e uma colecção de “reminiscências”.
Uma das vertentes mais discutidas por todos os intervenientes textuais é a relação que é possível entre um grupo de artistas que esteve durante tanto tempo alheia à institucionalização das artes (mesmo localmente) a ter lugar no mais significativo museu do burgo, entre a atitude de liberdade total (leia-se até “caos” e “anarquia”) com uma visão crono-histórico-museográfica. Essa é uma discussão que está sempre presente, inclusive no nosso espaço curto de acção artística, como se depreende sobretudo da “cena do Porto”. Mas além desse aspecto central de ética e posicionamento político no mundo das artes, há também um outro aspecto, idêntico mas directamente relacionado com a esfera do estético, que este catálogo exerce sobre o trabalho passado, que é o da legibilidade e da tradução. A esmagadora maioria dos cartazes eram ilegíveis ou pelo menos era necessário atravessar vários níveis de deslindamento para se perceber sequer onde e quando e com quem eram os eventos (este poster de Brinkman anunciando os “mal-odiosos” Melt Banana está a meio-caminho); a sua integração num design limpinho e certeiro do catálogo acaba por enjaular essa energia e mordeduras num discurso mais fechado. Ainda assim, e havendo contacto com as músicas das bandas relacionadas, sobretudo dos Lightning Bolt e dos Forcefield, e com os DVDs editados com os seus filmes de animação lo-fi, poder-se-á criar uma imagem à distância próxima da virulência e verve dos movimentos. Além de que, sobre a leitura dos livros de banda desenhada e ilustração indicados, poderá providenciar dimensões de profundidade.
Numa das “reminiscências” em Wunderground, de Meredith Stern, lê-se o seguinte: “the loose memories are what become the sea of nostalgia” (“as memórias soltas são o que se transforma no mar da nostalgia”). São as referências que se foram indicando, as associações possíveis, as dendrites que se espalham em variadíssimas áreas os únicos textos a que temos acesso enquanto fruidores das artes, paulatinamente criando uma imagem mental e geral, um mar, mas que parece ter ficado para trás. Falta remar ainda um pouco para ver que outras direcções serão prometidas por este grupo de artistas-selvagens.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho pelo empréstimo de Ninja e a José Marmeleira pelo do DVD Taking Out the Trash/Trash Talking.

15 de maio de 2007

Travaux Publics, Combats, Voyage. Yuichi Yokoyama (Matière)


Há relativamente pouco tempo, o crítico mais acrimonioso (e único?) de design em Portugal, Mário Moura [nenhuma relação, apesar de nos conhecermos pessoalmente], aliás, The Ressabiator, esteve na ESAG e deu uma conferência em torno do tema do design e da banda desenhada, repescando algo sobre o qual já havia tecido considerações no 4º número da Satélite Internacional (e que encontrarão no seu site, aconselhando-se a sua leitura).
Yokoyama parece ser um autor feito à medida para tornar a discussão do design na banda desenhada – não enquanto método de packaging, nem de embrulho, nem de estratégias secundárias, mas no seio da linguagem empregue – o mais ao de cimo possível. É como se os métodos de trabalho do design se tornassem passíveis (e são-no) de estruturação de uma linguagem narrativa da banda desenhada. A primeira vez que encontrei uma história de Yokoyama foi no número inaugural da Bête Noire, e já aí me haviam surpreendido as onomatopeias com direito de cidadania no plano visual. Estando elas representando sons fora da linguagem “articulada” e “civilizada”, cf. Mário Moura, elas ganham em Yokoyama (nessa pequena história e nestes três livros editados em França) o direito ao retorno à civilização, porque toda a civilização se plasma de acordo com o princípio construtivo dessas mesmas onomatopeias: presença total na bidimensionalidade, inseparabilidade do universo onde se inscrevem, dinamismo gráfico imperando sobre o narrativo.
Uma primeira ideia que vem à colação com a leitura destes três livros atravessa as relações antagonistas que as personagens estabelecem umas com as outras, mais subtilmente em Voyage, mais abertamente em Combats. Relações que passam pelo olhar (delas) mas que entroncam com o nosso (leitores-espectadores), necessariamente. São estratégias do olhar que funcionam mesmo num registo tão diferente quanto o de Gon de Masashi Tanaka (isto é, um registo tentativamente realista), o que aponta, para além da falsa dicotomia forma-conteúdo, a existência de uma força funcional (ou functiva, para nos desligarmos da ideia de um fim ulterior e nos aproximarmos de uma perspectiva que associa o actual ao verificável) que sobrevive a todas essas compartimentações primárias. Primeiro passo para o desmantelamento da “empatia”.
As acções das personagens, mesmos os gestos mais banais como abrir um maço de cigarros, acender um e depositar as suas cinzas num cinzeiro, são transformadas, pela presença sólida das linhas de movimento, pelo foco apertado dessa acção específica, pela sua relação com a mise en page, em momentos de uma grande tensão em Voyage, tensão a qual explode abertamente em Combats (e aqui é mesmo “combates” e não “debates”, vide Mário Moura), no qual o que parecem ser dois grupos rivais, um interminável exército de uns contra outros, sem que os possamos distinguir de acordo com qualquer eixo, se digladiam entre si nos mais díspares cenários e usando aquilo que estiver à mão, de utensílios de cozinha ao mais sofisticado dos armamentos. Nada disto serve para tornar os combatentes em implacáveis assassinos, à la Bullseye/Mercenário. Torna-se antes uma maneira de transformar o vórtice de acção numa louca e aceleradíssima paródia a esses mesmos épicos da banda desenhada, filmes, jogos de acção... Segundo passo.
Os jogos de reflexos, os já indicados trocares de olhares entre as personagens que se movem e as que estão sentadas, as que esperam e as que passam, os brilhos e distorções provadas pelas águas e pela luz do sol e pelas velocidades que também se cruzam, tudo isso são elementos díspares que se vão compondo e encontrando o seu nicho correspondente até criar essa imagem maior e unificada, a da obra.
O volume Travaux Publics, o primeiro editado, tem um pequeno texto que explica as “regras do jogo” da obra de Yokoyama, e Combats vem acompanhado de uma entrevista. É graças a esses dois textos que encontramos algumas linhas de apoio à interpretação. A inexistência de diálogo (em Voyage) ou a de diálogos que apenas servem para sublinhar o óbvio ou pequenos nós de viragem (Combats e Travaux Publics) revelam o pouco interesse do autor em construir personagens verdadeiramente humanas, “redondas” (no termo de Forster), de estruturação psicológica. Esse apagamento da humanidade perpassa igualmente através da figuração das personagens, homens compostos por informações mínimas para os corpos e com cabeças estilizadas como tudo o resto, e rostos próximos de uma logotipização, onde um determinado elemento, estrutura ou traço absolutamente claro se torna o símbolo que “nomeia” essa personagem. Como se a típica uniformização de uma personagem da banda desenhada clássica (Tintin quase sempre de calças de golfe, Batman com a sua capa e orelhas pontiagudas) fosse aqui levada até às suas consequências últimas e consumisse a personalidade (a psicologia) das personagens de Yokoyama. Todavia, esse apagamento da humanidade não serve para aumentar a possibilidade da (suposta) empatia – tese com a qual tenho dificuldade em concordar logo à partida – do leitor; bem pelo contrário, serve precisamente para apagar traços de ligação possível e assunção do estranhamento total. Passo último, portanto.
A desumanização atinge o seu grau máximo em Travaux Publics, onde toda a natureza (banal e natural) é brutal e rapidamente substituída por titânicas operações que erguem construções humanas representando... a natureza (artificial, logo fenomenal).
Esse silêncio e total funcionalização das personagens fazem também recordar esse papel apagado que é reservado à esfera verbal e actancial nos filmes de Jacques Tati, nos quais é precisamente o corpo, e os movimentos que ele desencadeia e que se estruturam em torno dele, que assume a preponderância máxima. Em Tati com humor, aqui através de uma frenética acção e um certo desconforto, também explicitados pelas fórmulas do próprio autor: “mangá sem história”, “sem princípio nem fim”, “representar a passagem de uma cena à outra”...

Esta última expressão indica claramente o modo como os livros de Yokoyama levam a pensar sobre a transição das vinhetas, quer segundo McCloud (relações aspectuais) quer segundo Groensteen (uma gramatologia), ou reformulando, levam-nos a repensá-las em termos de velocidade da leitura. Independentemente de estarmos perante uma transição entre momentos, acções ou aspectos, ou estarmos numa relação de coordenação ou de subordinação, tudo é exacerbado numa velocidade contínua de avanço. Vejam-se por exemplos estas três pranchas (páginas) seguidas, que representam – representação-como (Goodman) – a passagem progressiva por uma estruturas metálicas como de uma ponte por onde atravessa o comboio, sob a chuva batendo nas janelas, e ao mesmo tempo nos apresentam uma imagem geométrico-abstratizante – a imagem propriamente dita – perfeitamente compondo toda uma unidade não só plástica como de leitura (são três páginas, pelo menos implica uma acção de as virar; aqui estão na ordem de leitura ocidental). É tentador estabelecer entre estes três livros uma ordem narrativa ulterior, apesar de tudo, impondo uma flecha do tempo onde o próprio Yokoyama quer nos mostrar o seu aspecto cíclico e incansável. Esta estilização toda encontra a sua raiz mais nobre em Hokusai, como víramos a propósito do seu Manga, mas outros percursores serão os autores “formais”, de Sterrett a Vaughn-James à geração da RAW (penso especialmente em Mark Beyer) e a do Fort Thunder, sobretudo em publicações mais recentes, passando por um historial de designers e geómetras virtuosos.
A empatia apagada, retorna um dos possíveis fins do design: tornar tudo mais acessível, mais utilizável, user-friendly. A destruição da paisagem natural (ser humano inclusive) para levantar a sua funcionalidade. Em suma, citando um livro de poemas, é a “Ergonomia da paisagem”.
Nota: agradecimentos e desculpas a António Jorge Gonçalves. Foi um misto da sua simpatia e da minha bisbilhotice que me pôs no caminho destes livros.

14 de maio de 2007

Gogo Club. Ruppert & Mulot (l'Association)


Uma das mais básicas, bárbaras e patetas das acusações que se podem fazer perante uma obra de arte, sobretudo contemporânea, quando esta vem acompanhada de um texto do artista ou de outra pessoa, é que “uma obra de arte não precisa de explicações; vale por si mesma ou não vale nada”. Bom, confesse-se neste passo imediato que não estou escusado de ter caído nesta diatribe palerma e superficial numa que outra situação real, mas o dia a dia é feito de boutades que, numa pausa e reflexão, se apagam de imediato. A arte conceptual é construída precisamente na premissa de que se entenda, previamente, um conceito determinado para se poder apreciar o gesto artístico, ou por outras palavras, entender as regras com as quais se joga para se jogar melhor. (Mais)

8 de maio de 2007

CAIS 118.


Novamente um recado curtíssimo. Pela segunda vez, a escola Ar.Co colabora com a revista/projecto Cais, reunindo trabalhos de alguns dos seus alunos do curso de banda desenhada e ilustração, em torno de um tema. Desta feita são as paisagens, com textos de João Paulo Cotrim e deste vosso criado, textos que depois de darem o mote, se glosam noutras direcções como os gatos à água proverbial. O projecto foi coordenado por Jorge Nesbitt, mas muitos professores estiveram também envolvidos. Os meus agradecimentos a todos os envolvidos, e as minhas desculpas aos leitores.

1 de maio de 2007

Hokusai, First Manga Master. Jocelyn Bouquillard e Christophe Marquet (Abrams)

Hokusai. First Manga Master (versão inglesa de um livro originalmente francês) é uma selecção de algumas das páginas da imensa obra em quinze volumes Manga, de Katsushika Hokusai, que foram sendo publicadas entre 1814 e 1878, largos anos já depois da morte do artista (1849). Tendo em conta o difícil acesso (por razões de ausência de edições baratas e antológicas no Ocidente) a esta obra, este pequeno volume de cerca de 150 páginas é uma porta de acesso à mesma.
É provavelmente Hokusai o artista mais famoso no Ocidente sendo a sua obra ainda um continente desconhecido. Havendo desdobrado a sua criação em pintura, estampas, e até aquilo a que chamaríamos hoje de design (para bronzes e lacas, kimonos, netsukes e até tsubas – o guarda-mãos ou copos das longas espadas japonesas), o grande manancial e presença do seu poder encontra-se nos desenhos que produziu para livros. Isto é, grande parte da sua produção contemplava uma vida num meio reproduzido.
Como diz um famoso autor sobejamente citado quando se discute Hokusai, Jack Hillier, não obstante a flutuação da atenção do grande público ou dos canais de maior divulgação obrigarem estas imagens a surgirem sós e arrancadas do seu imediato contexto de livro, de conjunto, de série (o que já acontece no seio dos dois últimos volumes dos quinze desta obra, considerados não-canónicos), “para ser apreciado, tem de ser folheado página a página, imagem por imagem, o impacto sendo criado por um efeito de acumulação, e tendo o artista organizado voluntariamente os temas da série para despertar e manter o interesse, e terminando-a as mais das vezes com um crescendo calculado. Estes aspectos, específicos a esta forma de arte – o livro – não se encontra nas estampas individuais”. Este aspecto é fundamental. O livro, o acto de leitura, a construção por parte do leitor, quer de um acto escópico quer de um acto intelectual. Pensar de outro modo é querer desvirtuar a obra como ela é feita, como ela pode ser fruída, alimentado que se está por um preconceito e até uma ideia de que se está antes a fazer um “favor”, uma espécie de “elevação”, quando na verdade se está a falhar redondamente no acto previsto pelo autor: a leitura. (esse é um dos aspectos que entristece ao folhear este volume, sendo apenas uma selecção; fica sempre a ganância do “mais”).
Havia dois modos de compor livros no Japão na altura de Hokusai. Uma primeira classe de livros eram os que nós chamaríamos “de acordeão”, onde as folhas eram coladas umas às outras pelas bordas. A isto chama-se orihon. Os outros eram os livros ditos “ilustrados”, chamados ehon, cujas folhas eram dobradas ao meio e cosidas em cadernos. Estas folhas eram apenas impressas de um lado (mais tarde alterado graças às mudanças de tecnologia, como no caso dos exemplares utilizados para esta edição), por dois blocos de madeira que dividiam a imagem (no centro existindo um intervalo, que é tentador chamar de “intervinhetal”, mas seria falso, pois não se estabelece aí a mesma actividade mental de suspensão entre duas unidades como sucede na banda desenhada, é simplesmente uma limitação técnica) e ainda uma estreita faixa dos lados, chamada hashira, onde se colocavam várias informações (título do livro, volume, etc.; mais uma vez, estas informações são bebidas de Hillier). Reforça-se assim a especificidade da criação desta obra enquanto desenhos-em-livro, desenhos-em-série.
Como é indicado pelos autores deste pequeno volume, o imediato percursor ou modelo para o Manga de Hokusai encontrar-se-á no corpus existente de livros académicos, que ensinariam várias técnicas aos pintores, técnicas de desenho, de composição, etc. no interior do eixo China-Japão, e no qual a Coreia não foi alheia, mas algo lateral. A esta tradição também o Ocidente não era alheio, com cartapácios que reuniam em si toda uma quantidade de formas para se seguir o conhecimento e o talento, uma espécie de Etimologias de Santo Isidoro visual. Para um exemplo que conheço, indico o Reiner Musterbuch, do século XIII. Hokusai, quanto a ele, também elaborara um outro volume com esse sentido mais em mente, onde apresenta métodos simples, esquemáticos e geométricos de desenhar as mais variadas formas do mundo (um pouco como hoje surgem em quase todas as revistas infantis, por exemplo); se não estiver em erro, o título dessa obra é Como desenhar simples e depressa, e diz tudo. O termo em japonês é “Ryakuga”, ecoado por exemplo no Rakuga King, livro de desenhos livres de Terada Katsuya. Hokusai não está sozinho no mundo, mas leva o seu gesto a antes insuspeitadas amplitudes.
O conceito que preside a todos os volumes de Manga é, como já repeti, o da série. Ele é extremamente importante para um pensamento como o de Hokusai, um pensamento sobretudo pragmático e expressivo. Todos os dias, como uma espécie de gesto mágico-profissional, desenhava um leão-do-sol, o karashishi, como prece por um bom dia. Estes desenhos seriam apenas reunidos décadas após a morte do artista, mas a ideia de série está ainda mais patente na obra que publicou em vida, sobretudo os famosos dois livros dedicados ao monte Fuji e um outro em torno do rio Sumida. A ilustração redutora ou propriamente dita – a criação de imagens para explicitar um determinado conteúdo narrativo verbal anterior – também não foi território alheio ao mestre japonês. Exemplo máximo disso é a sua versão do clássico Viagem ao Ocidente, do qual o mais recente Dragonball derivaria igualmente. Em todos estes casos, porém, é fácil encontrar qual o “centro” a partir do qual as séries se estabelecem, divergem e retornam. Mas nos volumes de Manga a série parece perder um centro, já que se sucedem desenhos organizados por temas mas sem aparente estratégia organizativa. Ou antes, esse centro parece explodir e tornar todo e qualquer canto do mundo num potencial ponto de atenção onde converge a acção de Hokusai. Os editores deste volume organizam os desenhos por classes (animais, plantas, seres mitológicos, etc.), mas mesmo havendo algum princípio mínimo em cada volume original, são princípios relativos e nunca absolutamente claros (veja-se aqui a reprodução de um dos volumes originais, seguido de algumas imagens do interior).
Se a ideia da banda desenhada é uma nebulosa, sem nítidos e regrados contornos, mas antes um intervalo de noções contíguas que exerce uma espécie de luz, essa leve indecisão nos extremos permitir-nos-á incluir e discutir objectos que, a uma primeira aproximação, não se incluiria sob essa designação, caso imposta dicionaristicamente. Inclui-se isto mas não aquilo, mesmo sem ter a certeza de uma razão definitiva e explicável. Um dos elementos dessa nebulosa seria a da sequencialidade; pelo que arrumar os ciclos de Fuji e do Sumida numa prototípica banda desenhada não seria um exercício displicente. O título de Manga poder-nos-ia induzir a uma sua inclusão imediata, especialmente se tivermos em conta que é Hokusai que a inventa, à palavra (mas que apenas seria aplicada no Japão ao que hoje reconhecemos como mangá depois da 2ª Guerra Mundial, de acordo com Katayori Mitsugu; procurem a sua entrevista aqui). Porém, uma mais cuidada leitura torna a argumentação desta inclusão imperiosa. Em suma, é preciso – e sempre – pensar e tentar explicitar os porquês das nossas decisões.
Edmond de Goncourt, que é também citado neste pequeno volume, na sua obra Hokusai escreve o seguinte a propósito de Manga: “Mas a maravilha deste volume, como figuração do corpo humano em movimento, é o estudo da esgrima (...), onde setenta pequenos esboços de homúnculos, e uma vintena de outros maiores, colocam-vos, como sob os vossos olhos, os avanços, os recuos, as torções dos corpos (...)”. Goncourt maravilhara-se portanto sob esta estranha magia exercida sobre o olhar pela profusão e repetição de um mesmo corpo em variadíssimas posições, o que impedia de se fixar sobre uma só delas, uma figuração solidificada numa só pose, isto é, um ricto expositivo, mas como que o obrigava antes a vogar de trás para a frente, em espirais e volutas que tentavam captar esse movimento que não existia em qualquer uma das figuras tomadas singularmente, antes na sua relação de contiguidade mesclada com o do olhar, obrigando assim a mente à “figuração do corpo humano em movimento”. Nem todas as páginas – sempre tomadas duplamente, um recto e um verso como unidade de sentido única, mesmo que divididas em “secções” ou “vinhetas” ou “quadros” – possuem essa profusão de corpos, algumas até mostram uma paisagem estática, um só elefante, uma azálea cortando a lua cheia. Outras há porém que são maravilhosamente carregadas de um estranho e incapturável movimento: um bonzo seguido de dois camponeses aproximando-se de um rio onde rodopia um vórtice, várias cascatas onde se passeiam pessoas, levando-os a pensar numa sequência temporal e espacial desse grupo de passeantes, um samurai na boca de uma gruta que parece uma onda de pedra, o monte Fuji fustigado por uma chuva oblíqua densa, um pequeno edifício tombando no centro de um fogo consumido...
Hokusai parece também introduzir alguns elementos gráficos e estilísticos que se tornariam, mais tarde, rotineiros na banda desenhada, como por exemplo a sobreposição de traços a cinzento obscurecendo os desenhos para dar a ideia de “debaixo de água” (Töpffer fez o mesmo em Monsieur Cryptogame), traços paralelos cujo interior é branco e interrompe o desenho “por baixo/por trás” para representar uma pesada chuva (que Yuichi Yokoyama elevaria a uma presença visual central), a fragmentação dos objectos em pequenos pontos para mostrar a derrocada de um edifício (acção rápida capturada no chamado “momento pregnante”, e que no Ocidente surge pelo menos de uma forma magnífica nas Cantigas de Santa Maria) e o que desconfio, não podendo confirmá-lo, ser uma onomatopeia, no desenho que representa Osakobe no Sugaru, nas páginas 152-153, à esquerda...
Assim sendo, a filiação da mangá moderna (ou melhor, da banda desenhada, já em que japonês a palavra se aplica para além dela, ao cartoon, a desenhos, caricaturas, etc.) em Hokusai não pode ser encarada como uma linha toda a direito, sem tremores e convulsões, mas antes como sendo o grande artista das ukiyo-e uma das linhas que convergiriam para esta outra arte, linha no interior da qual se experimentara e cultivara sobretudo um certo prazer em tornar o desenho o mais desprendido possível, quase uma caligrafia pouco regrada e transformada em breve apontamento, pensamento rápido, precisamente uma ideia “fátua” (de novo associando-o às ukiyo-e, mas levando o seu conceito à mais extrema das consequências). Hokusai provara noutras publicações e nas outras suas actividades artísticas a mestria em termos de realismo, de acabamento, de virtuosismo, de propriedade face às regras e aos princípios balizados do seu tempo e lugar; à sua inscrição numa vetusta e respeitada tradição; em Manga liberta-se desse mesmo peso e procura a abertura de um campo mais livre (não obstante, associando-se ainda assim a outra tradição, no Japão garantida desde cedo pelo Choju Giga de Yoshizawa)
Como a propósito de um ou outro autor, se bem que em circunstâncias muito diferentes, esta opção pela série de desenhos de uma mesma natureza ou classe revela uma espécie de voragem por deixar uma marca em todo o universo, representando todo o universo através das suas próprias marcas. Em Hokusai, essa voragem está presente ainda – se bem que se tratasse de algo relativamente habitual nos seus círculos – na quantidade de vezes que Hokusai mudou de nome ou assinava diferentemente estas ou aquelas produções (num catálogo francês indicam-se 26, com o alerta de não ser exaustiva). Não se poderá falar aqui propriamente de pseudónimos (os quais servem para ocultar o nome real) nem de heterónimos (que pretendem dar um corpo coeso e uno a uma voz dissonante no interior do eu), mas antes de alterónimos, com os quais se pretende demarcar uma característica da sua própria personalidade, através da utilização de termos mágicos e significativos. Por exemplo, “Velho louco por pintura” e “Um outra vez”.... Na verdade, Hokusai é um desses nomes, que se traduzirá como “atelier do norte”, associando-se assim à sua profunda entrega à religiosidade (Budismo Nichiren, de acordo com as biografias).
Em mais que alguns aspectos, Hokusai parece ter o mesmo papel no Japão que Töpffer teve no seu espaço de influência (que se pode desdobrar desde Suíça-França-Alemanha à Europa ao mundo inteiro). Ambos não são responsáveis totais pela “invenção” da linguagem que inauguram (nenhuma arte ou novo modo nasce ab ovo, mas encontra-se na linha de convergência e choque de modos anteriores), mas são eles quem fazem despertar uma consciência nova e uma possibilidade de nomear (debuxar um contorno à volta de qualquer coisa). Se Töpffer faz inaugurar essa ideia com o Ensaio sobre a Fisiognomonia, Hokusai fá-lo cunhando a própria palavra manga. Ambos também se encontram na abertura de um novo território que se iria diferenciar e distanciar desses primeiros percursores. Ambos se revelariam a longo prazo como verdadeiros experimentalistas e destemidos criadores num espaço criativo onde a grande massa de trabalho se contentaria com expressões menores (ainda que de maior sucesso ou nomeada). Ambos estão presentemente sob um escrutínio inédito e balizado que os rememora e recupera para a história de uma arte tão particular como esta.
Em muitos locais se lê que Manga se trata de um livro de esboços, sketches, esquissos... Não. Isto não é um repositório de cartones à la Miguel Ângelo que serviriam a um outro fim ulterior, num outro modo de criação e expressão e construção. Tratam-se de desenhos. Um desenho não deve estar sempre sobre a sombra da ideia de ser ou um desejo incumprido ou a cumprir, nem a de ser uma ferramenta para... É. Nada mais a acrescentar.

C'est bon anthology. AAVV (cestbonkultur)


Não pretendo alongar-me sobre esta publicação, somente desejando dá-la a conhecer a quem porventura a deixe passar abaixo do seu radar. Trata-se de uma excelente revista, com uma inteligente e equilibrada e diversa escolha de trabalhos de banda desenhadapor artistas de variadíssimos quadrantes, desde o nosso Pedro Nora ao finlandês Marko Turunen, passando por outros nossos conhecidos como Jyrki Heikkinen ou Danijel Zezelj. E depois, uma mão-cheia de desconhecidos, e agradáveis surpresas entre eles. A editora apresenta ainda outras publicações, umas delas mais apelativas que as outras, pois tudo, inclusive esta revista, está sobre aquela patina de militância da banda desenhada enquanto arte, mas querendo com isso respirar um mesmo ar de arte como corresponde àquelas ditas "altas", "grandes", "de galeria e museu", e não propriamente construindo um discurso que procure o espaço próprio que a banda desenhada - contaminada ou não, contaminando ou não - pode ocupar por si mesma.
A Cestbon inclui um texto de Paul Gravett precisamente sobre esta questão, partindo da exposição havida nos EUA e cujo livro-companheiro foi aqui debatido. Mas depois entra em pequenos erros de interpretação, subjectivismos e impressionismos fáceis, e pouca justificação sustentada. Uma piscadela de olho à auto-intitulada vanguarda da banda desenhada? Uma pequena pancadinhas nas costas de amigos? Para uma sustentada assunção da banda desenhada como uma linguagem passível de uma força estética própria mas capaz de exercer a sua influência sobre a sociedade como outras artes o fazem (estas mais, aquelas menos), só há um caminho: o do fazer, e o do fazer bem para ser mais específico. Tudo o resto são circunstãncias flutuantes.
É a esse propórito que se deve sublinhar a presença de Pedro Nora, o qual apresenta uma pequena banda desenhada de 21 pranchas, "sem texto", com mais uma história da sua colaboradora Jessica Khane, mas que nos poderá recordar de um dos mais famosos episódios do América, de Kafka. No entanto, a torção exercida sobre essa personagem de Kafka é idêntica àquela que Orson Welles fez sobre o protagonista de O Processo. Onde a angústia e a impotência se alimentam mutuamente em Kafka, nestes dois autores que constroem versões, a liberdade apresenta-se com uma felicidade conquistada pela acção extrema. Conjuntamente com mais um episódio da saga doméstica de Alien, de Turunen, estas revelam-se os trabalhos mais fortes e consistentes de toda a antologia.
Mais, e ainda que deva confessar não conhecer antes Aleksandar Opacic (cujo site ou colectivo é este; divirtam-se a procurar), estou ainda a tentar descortinar o valor e a força exercida pela sua banda desenhada, de cinco pranchas de regularíssimas 16 vinhetas, todas preenchidas pelo que parece ser a leve passagem de um punhado de cinzas. Assim se constrói na indefinição uma paisagem, várias personagens reconhecíveis na sequência, cenas de combate entre cavaleiros, anjos e demónios, uma princessa salva? Não pode haver certezas algumas, os olhos tentam fixar as imagens, mas perde-se rolando nessas fátuas figuras e matéria difusa.
C'est ça.
Nota: agradecimentos a Isabel Carvalho, pela oferta.