28 de agosto de 2006

Lucille. Ludovic Debeurme (Futuropolis)


É difícil ponderar com distância quais as consequências da presença de Ludovic Debeurme na cena contemporânea da banda desenhada, tendo em conta a relativa proximidade da maioria dos seus títulos, sobretudo este último, Lucille, também editado na nova vida da Futuropolis, tão desbastada por Menu.
Independentemente da sua longa carreira de ilustrador, cujas tipologias diversas estão presentes no seu Mes Ailes d’Homme (Éditions de l’an 2), uma colecção de desenhos livres e esboços, a produção de Debeurme é mais reduzida, com uma meia-dúzia de títulos, inclusive este mesmo. Parece-me que este artista, tal como muitos outros, faz parte de uma geração que vem imediatamente a seguir a uma geração de “inventores” ou de “instauradores” de novos processos ou mesmo linguagens, mas que ainda não trabalhando uma franca e vincada diferença, não se deixam à sombra dessoutras invenções, mas procuram com tranquilidade traçar o seu próprio espaço.
Na verdade, há uma série de características do estilo de Debeurme que me impedem de não fazer ligações com um outro artista, ligação que não deixa de ser evidente para quem conheça ambos: Chester Brown, sobretudo The Playboy e I Never Liked You. Em primeiro lugar terá a ver com a proximidade física, estilística, visual, da personagem-Lucille com a personagem desses livros indicados do autor canadiano. Mas isso seria superficial demais. A questão é que a própria estruturação das pranchas, em que as vinhetas não são mais delineadas senão através de espaços vazios que se adivinham, parecem ecoar aspectos de Chester Brown. Mas o próprio ambiente narrativo é análogo, e o ritmo também próximo: das mais de 500 páginas deste primeiro volume de Lucille, Debeurme consegue apresentar um interessante equilíbrio entre a lentidão (as vinhetas sem texto, a apresentação de espaços de contemplação, de “imagens ao longe”, de sequências de reacções das personagens, sonhos, de textos introspectivos, de separadores) e a rapidez (sequências de acção, pela simplicidade da escrita e do desenho, pela repetição rítmica de um rosto).
É verdade que Chester Brown trabalha no território da autobiografia, onde as memórias pessoais ganham uma nova dimensão quando ganham forma coesa e estanque numa procura singular, e Debeurme apresenta-nos aqui uma absoluta ficção (que nunca o é), onde seguimos a vida de uma rapariga, Lucille, e do seu primeiríssimo namorado, “Vladimir”. Mas ambos abrem-se para as feridas que o crescimento acarreta, de um foro sexual aqui, emotivo ali, da sede por independência e por respeito pela personalidade que cada vez mais se torna “única” e “própria”, as mais das vezes por oposição aos progenitores, ou aos mais velhos, mas que passa sobretudo pela crise de de repente um adolescente se sentir, pela primeira vez na sua vida, uma pessoa. Isto é, um ser humano com todas as suas contradições, fragilidades, incertezas e alegrias breves.
Lucille é a típica borboleta feia, que voga num clima confuso e ambíguo da sua personalidade que se desenvolve, que se vê feia e é julgada pelos outros, mas que subitamente pode encontrar um novo olhar num rapaz apaixonado, que descobre nela belezas que lentamente emergirão por si. Debeurme consegue alterar o aspecto de Lucille não só pelas suas transformações físicas (da idade, mas também da doença e da alimentação), mas em muitos casos acompanhando a percepção dos outros. Por vezes, é tão simples como alterar o modo como desenha as pupilas e os contornos dos olhos, mas é esse gesto que torna a protagonista num caso paradigmático do balanço entre a beleza e a falta de auto-estima de que é vítima, e como isso é possível ser tratado graficamente pelos desenhos.
Como disse, este livro apresenta-se como a “primeira parte”, apesar de ser em si uma estória perfeitamente redonda, em que as crises são resolvidas pelo par mais antigo do mundo e da existência humana, o amor e a morte. Mas se seguirmos a vida de Lucille, não será por Debeurme ter criado um espaço de curiosidade e de comercialização das expectativas, mas antes por nos ter aberto a alma desta sua personagem, nos dar a ver as suas francas feridas e ficarmos na esperança de as ver, a todas, sarar. Posted by Picasa

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