4 de julho de 2005

Buddha. Osamu Tezuka (Vertical)


Não existem Evangelhos propriamente ditos de Buda, isto é, uma única tradição de escritos que fosse adoptada por um poder eclesiástico central pelos quais todos os outros se pautassem. Existem escritos, seja como for, e versões, misturando factos históricos a mitos anciãos, a episódios fantásticos e suposições tardias, sobreposições de vária ordem e reinterpretações estrangeiras. Mas Buda, nesse aspecto, partilha dos mesmos princípios que Jesus, o Cristo dos Católicos: aparta-se a figura da fé da personalidade histórica e da personagem das subsequentes ficções. O importante são os seus ensinamentos.
Esta é uma das outras obras centrais e maiores de um já amadurecido e mais livre Tezuka, juntamente com Phoenix ou Os Três Adolfos. Não sendo uma obra construída com uma mesma preocupação unicamente narrativa Tezuka permite-se aqui a grandes flutuações de registos, como veremos.
A narrativa começa relativamente antes do nascimento de Buda, precisamente para dar a ver as conexões possíveis entre o surgimento deste homem-acordado-em-deus e as circunstâncias do mundo antes dele, e mesmo para poder criar conexões que mais tarde farão sentido, entre as várias personagens envolvidas. As pequenas alterações relativas à “verdade histórica” (seja ela qual for) começa na juventude do príncipe Siddhartha (famosamente sabido desde o livro de Hermann Hesse): nas narrativas mais famosas, é rapidamente que se passa à sua fuga após o casamento e nascimento do filho, em busca de uma resposta para além da ilusão da vida de todos os dias (o véu de Maya), mas Tezuka demora-se nas suas considerações de como seria a vida deste homem, enquanto ainda homem comum.
As ilusões possuem vários avatares. Por isso o costumeiro estilo de Tezuka aqui reveste-se de novas interpretações. As flutuações de registos, que tanto nos dão a ver episódios incontestáveis da vida de Sakyamuni (“o sábio do clã Sakya”), como sub-plots de personagens fictícias, até piadas das mais brejeiras do tipo “xixi-cocó”. A arte também tanto se encontra no maior grau possível de realismo de Tezuka, com sombreados, rostos detalhados, diálogo forte e credível, até à mais açucarada e queridas das cenas com olhos enormes e lacrimejantes e falas delicodoces, já para não falar da profusão de chibis, de intromissões de personagens de outras das suas séries, até mesmo a passagem do próprio Tezuka, enquanto médico, pela história! São pequenas incongruências, por vezes abertamente anacrónicas – a comparação de uma cidade antiga como Savatthi com Nova Iorque, um príncipe a ler compilações de mangá -, que pautam o que seria uma alargada (mais de 3000 páginas!) e pesada história solene com humor, o que garante um ritmo leve à sua leitura. Apesar do tom maioritariamente controlado em termos da relação formal com a organização das pranchas, há momentos em que a existência da própria prancha, das vinhetas, de todos existirem num livro de mangá se torna autoconsciente... Mas isso não desarruma a nossa leitura. Não podemos deixar de ter em conta, ainda, que esta, ainda que sendo uma obra de “maturidade”, servia a um público amplo... Phoenix tinha sido publicado na revista COM, mais experimental (de acordo com as palavras do autor), e na esperada passagem para a Kibonotomo, em 1972, Tezuka preferiu entrar num novo acesso ao mesmo tema: a biografia de Buda.
Estas alterações de registos e pequenas piadas recorrentes existem como concessão a esse público mais jovem, sem dúvida, mas revelando ao mesmo tempo a mestria com que Tezuka as incorporava, sem deixar ceder toda a estrutura do resto.
Finalmente, e tal como em Phoenix, também aqui o tema é essencialmente budista, ou humanista, ou além disso: não é uma questão de normativismo religioso, mas um verdadeiro e profundo respeito pela natureza, em toda a sua comunicação e existência, que Tezuka procura aqui enaltecer. Talvez se possa associar a isso a abundância, senão exuberância, de soluções gráficas, registos, tipologias que vão surgindo em Buddha. É que tudo merece o nosso respeito e nada é desprezível aos olhos de uma transcendência em que Tezuka acreditava. Por outro mesmo lado (quer dizer, por outro lado, mas ainda no mesmo plano), a lição central do “Iluminado” é fazermos aquilo que temos a fazer o melhor possível, e esta mesma obra de banda desenhada, e outras, gloriosa como é em si mesma, é a prova de que Tezuka leva esse preceito de uma forma cabal, fazendo o melhor possível com a sua arte e engenho.
Nota: De acordo com as informações disponibilizadas pela editora no seu site (www.vertical-inc.com), presume-se que o oitavo e último volume esteja editado no final deste ano. Se for caso disso, e é bem possível que sim, a Buddha retornarei. Posted by Picasa

4 comentários:

Ferrão disse...

Parabéns, mais um óptimo texto sobre uma bd que parece muito interessante. Como já aqui referi, da obra de Tezuka só conheço Ayako. Comprei os 3 volumes em frança, mas por cá só encontro alguns volumes dispersos na FNAC. Por isso se fosse possível gostava que me dissesse onde adquiriu estas mangás de Tezuka, obrigado.

Pedro Moura disse...

Por razões óbvias, não faço publicidade nem a livrarias nem a instituições comerciais, apesar de ter respondido pessoalmente à pergunta colocada.
O meu único conselho à nação é que vale a pena o esforço de procurarmos por nós próprios que soluções melhores se adequam aos nossos desejos e possibilidades de compras. Acrescento que há livrarias competentes em Portugal (não só na capital), abertas a pedidos e encomendas, e que a internet é um mundo que não nos pára de surpreender solucionando os mais estranhos desejos...

makuma disse...

Boas! Eu encontrei a coleccao na biblioteca ha uns dias aqui em Brighton. Acabei por comprar os oito volumes e estou "colado" no sofa!
Embora nao seja grande conhecedor de b.d. (musica e mais a minha cena) devo dizer que achei estes volumes excepcionais. Tambem recomendo a leitura para quem como eu ja tenha viajado pelo norte da India pois as paisagens sao muito fidedignas.
A coleccao comprada pelo amazon (com alguns volumes em segunda mao mas em bom estado) ficou-me por 65 euros..
Parabens tambem pelo blog. Tenciono dar mais feedback ha medida que va lendo outras sugestoes aqui propostas.

Obrigado

Antonio

P.S.1- O pouco que eu ja li e gostei:

"Maus: A Survivor's Tale", "The Hollow Grounds" de Luc Schuiten e Francois Schuiten, e os volumes "Kabuki" de David Mack.

P.S.2 - A minha musica
http://www.last.fm/user/makuma79

Anónimo disse...

É realmente uma obra-prima. Osamu Tezuka teve muito talento e sensibilidade para tratar um tema de muito interesse. Às vezes não é fácil desenhar imagens religiosas por causa das muitas polêmicas envolvendo fatos desconhecidos. Mas é uma obra que envolve o leitor, instigando a ler mais.