23 de novembro de 2004

UM FANZINE É...


Um fanzine é, acima de tudo, um espaço de liberdade. Um espaço no qual os intervenientes têm toda a liberdade de expressão possível. Isso porque o fanzine, assim como outros meios de expressão existentes (nada vive sozinho), vive à margem dos vários campos de poder, sejam estes económicos, políticos, e outros, inclusive os das hegemonias culturais, insistentes em hierarquias de gostos e ou processos de criação. Isto não quer dizer que este ou aquele autor, ao criar um fanzine, não esteja a responder aos campos da criação cultural - ao fazer um trabalho de género, que procure se referenciar em trabalhos de outras pessoas, que procure chegar a um público mais alargado ou mais elitista - ou ao económico - como "trampolim" de chegar a publicações mais comerciais, ou tentando competir com elas - ou ao político - sobretudo no que diz respeito às publicações "de intervenção" ou com grande expressividade social. (Mais)

In the Shadow of No Towers. Art Spiegelman (Pantheon; ed. esp., Norma, ed. fr. Casterman)


Como é possível que, a um só tempo, seja perigoso ler este livro com expectativas criadas por Maus, e também operativo não esquecer essa ligação? É possível, na medida em que se Art Spiegelman tem algo de diferente, é a sua capacidade quase única em trabalhar na fronteira artificial que separa a forma e o conteúdo da banda desenhada. Não se trata de um livro taxativa e escorreitamente narrativo ou fechado, mas é ainda um livro sobre um tema obsessivo do autor: o modo como a memória pessoal se reintegra no consenso social, por um lado, e numa tradição específica da criação da banda desenhada (a criação de uma verdadeira memória?). Spiegelman procede, através duma multiplicidade de formalismos funcionais, à explicitação do que sentiu imediatamente antes, imediatamente depois e durante o fenómeno a que chamamos "11 de Setembro". É um livro confessional, político, expressivo, ensaístico, e para além disso, numa harmonia caótica, se tal é possível. O texto introdutório e o ensaio final (e o "apêndice") não só consolidam o propósito dessa "Não-Sombra", como apontam os limites do território em que o autor trabalha (a memória).
(publicado em Mondo Bizarre 21) Posted by Hello

Na prisão. Hanawa Kazuichi (ed. fr., Ego comme X; ed. ingl. e esp., Fanfare/Ponent Mon)


A palavra medíocre, no seu sentido primário, significa "a meio da subida de uma montanha". Ainda que nem sempre nos possamos obrigar a sofrer experiências-limite, é perfeitamente possível apreciarmos ao máximo o meio de um caminho, se descobrirmos onde se encerra a mais subtil das belezas nele próprio. Hanawa foi um dos participantes da Garo, a plataforma de lançamento de uma manga menos convencional, menos devedora a Tezuka, e mais autoral. Preso três anos por posse ilegal de armas de fogo, essa experiência levá-lo-ia à criação deste livro, que mostra a sua vida na prisão. Fã e "discípulo" de Tsuge Yoshiharu, também Hanawa prefere menos melodrama e mais atenção às subtilezas que podem compor (ou antes decompor) "o tempo que passa". Numa imagem que mostra a sala de jantar, indica-se o local da "Ratoeira. Às vezes apanham-se ratos". Essas ratoeiras estão espalhadas pelo livro todo, e servem para nos apanhar quase imperceptivelmente. Numa leitura descuidada uma colecção de narrativas pedestres, este é antes um livro que segue o coração, a cabeça e o estômago: a contínua dissertação sobre comida, a concentração nos movimentos das mãos e dos rostos, as pequenas relações ora tensas ora desprendidas entre as pessoas, os momentos em que a representação física se altera com alguma metáfora visual, a adaptação de uma canção infantil, são apenas indícios dissemelhantes e dispersos numa obra quase arrítmica e, por isso, mais imitativa da vida. (Em 2002, foi adaptado ao cinema).
(publicado em Mondo Bizarre 21) Posted by Hello

Montanhas de Verde na Serra de Sintra. João Paulo Cotrim e Alain Corbel (Área Metropolitana de Lisboa)


Usualmente, quase por princípio, um projecto institucional que envolva a criação com um fito determinado estabelece delimitações dentro das quais é difícil algum movimento livre. Mas quando entregue a autores competentes - na melhor acepção da palavra - esses fitos são apropriados e empregues, juntos ao talento, para alcançar novos e diferentes frutos. Reinventando os propósitos (talvez seja um preconceito meu) limitados ou estreitos desse projecto, nomeadamente a sensibilização ecológica, geográfica, etc., os autores atingem algo mais pessoal, Cotrim sublimando cada vez mais a sua escrita sinestésica e Corbel gerindo o equilíbrio entre uma linguagem ora despojada ora metafórica. Ainda que não seja a melhor das plataformas para estes autores que já provaram noutros trabalhos a capacidade de experimentação e diferenciação que possuem, não deixa este de ser um livro interessante no seu percurso. Terceiro volume de uma colecção dirigida sobretudo aos jovens, acompanhamos Ana na descoberta da Serra de Sintra. A colaboração das cores de Alex Gozblau e a consultadoria científica de José Manuel Marques são seguramente peças importantes neste jogo equilibrado duma colaboração criativa e mutuamente exponenciadora.
(publicado em Mondo Bizarre 21) Posted by Hello

Blood Orange. Vários, # 1 - 3 (Fantagraphics)


Para quem não pode estar a par e passo dos artistas mais alternativos dos principais focos de criação de banda desenhada no mundo (leia-se "centros"), ou perdeu a oportunidade de comprar os fanzines que publicaram esses trabalhos, surgem de vez em quando estes projectos editoriais que pretendem fixar de uma forma mais permanente essas fabricações. Alternando material de vários fanzines norte-americanos ou inéditos e éditos de artistas menos conhecidos (ex., J. Hankiewicz, Huizenga, a holandesa Hartjes, o brasileiro Fábio Zimbres) com outros mais famosos (Altergott, Collier, Regé Jr.), e ilustrações (sketchbook de G. Baseman), parece que o editor Chris Polkki pretende também um retrato geral de uma tendência alargada de criação. Os próximos números prometem-se maiores (80 e tal páginas) e juntando artistas de muitos quadrantes, desde americanos, a europeus como a malta do Le Dernier Cri e Fréderic Poincelet e a fabulosa "scary-cute" japonesa Junko Mizuno.
(publicado em Mondo Bizarre 21) Posted by Hello