8 de julho de 2004

Blankets. Craig Thompson (Top Shelf)


A publicidade, as expectativas e a recepção deste último livro de Craig Thompson (que editara na mesma editora há uns anos antes Good-bye, Chunky Rice) foram bastante vincadas. O merecimento é total. Chunky Rice utilizava animais animados (tartarugas, ratos) para uma parábola sobre ir embora de um sítio, deixando amores para trás. Muitas outras pequenas peças de Thompson versavam temas muito diversos, por vezes colaborava com outros escritores, mas houve sempre um interesse geral pela condição humana, as relações entre as pessoas, às quais se apelidam por falta de outros vocábulos mais acertados “amizade”, “amor”, “companheirismo”, etc. Em Blankets, todos esses aparentemente desconexos temas apresentam-se com uma coesão quase confessional.
Esta é uma obra extremamente pessoal, não só por ser baseada em acontecimentos reais da vida do autor – ou assim o faz entender - , nem sequer por trazer ao proscénio da página cenas difíceis de confessar (alguns episódios passados com o irmão, particularmente, parecem revelar algum ultrapasse emotivo), mas sobretudo por estar envolvido em cada página o visível idioma identificativo do autor. Craig Thompson não é propriamente um inventor de linguagem ou de recursos narrativos na banda desenhada. Isto é, os processos pelos quais ele define a macro- e as microestruturas de todo o livro não levantam problemas de originalidade, redefinições, ou novos empregos. Mas o que Thompson é capaz de fazer é empregar todos esses “truques”, todos esses mecanismos para levar a bom cabo a sua história. Nesse aspecto de ser atento às existentes técnicas e empregá-las comedida e equilibradamente, lembrar-me-ia Matt Madden, seu companheiro em armas também nas aventuras pela Europa, em termos de contactos com L’Association. Porém, parece-me que se no caso de M. Madden as coisas são feitas de uma forma axiomática, quase programática, Thompson opta por uma subtileza nem sempre comum. Blankets não é uma pedrada no charco, nem the next big thing, nem pretende levantar questões imensas na arte em que se inscreve. Mas é, sem dúvida, um livro maravilhosamente bem-pensado e construído, porque vivido ao máximo na sua feitura. O autor confessou várias vezes que foi delicada e custosa, para mais pela decisão inicial de não a editar em episódios, num formato mais normal de comic book, mas antes avançar até ao seu término, durasse o tempo que durasse, custasse o que custasse, e editá-lo neste formato final, de mais de 500 páginas. Outro aspecto difícil foi lidar novamente com o seu período da infância e da adolescência – da qual saiu há pouco, visto ter 28 anos - , a qual foi passada no seio de uma família ultra-religiosa, conservadora em muitos dos temas que ele próprio viria a abordar (sexualidade, criatividade, espírito de missão no mundo), e que por pouco o iria abafar, não se desse o caso de ter “fugido”...
A velocidade de leitura de Blankets é curiosa. Uma das formas de entendermos a funcionalidade do espaço entre cada vinheta – a que S. McCloud indica com o ridículo nome de “sarjeta” (“gutter” não pode funcionar, já que esse é um mecanismo que nos livra de desperdício, e o espaço entre as vinhetas é precisamente onde se encerra a Arte Invisível de que o próprio McCloud fala) – é similar à da morfologia das conjunções. De uma forma muito simples, podemos dizer que C. Thompson consegue um ritmo bem cadenciado, sobretudo pelo uso de conjunções copulativas, numa sucessão sintáctica de causas e consequências (acrónicas, note-se), que exige a um primeiro nível uma leitura rápida, que não se abrande. Mas ao mesmo tempo, apresenta-nos uma estrutura formal dos painéis (a “utilização retórica”, segundo a terminologia de B. Peeters) que nos convida a uma “degustação” mais lenta, que se repita.
Haverá muito por onde se pudesse debater a qualidade deste livro. O significado de “blankets” não só como, denotativamente, a colcha que lhe é ofertada, mas os vários níveis metafóricos que vai assumindo ao longo da diegese. A divisão em capítulos e os títulos de cada um. A opção em estruturar o grande corpo da narrativa num tempo relativamente linear, mas intercalá-lo com inúmeras analepses e prolepses (por vezes encaixadas) que apenas aumentam a tensão e o desenlace de determinados episódios (como os da brincadeira boçal e perversa do baby-sitter masculino a Craig e depois ao irmão). A interposição de interpretações, citações e histórias da Bíblia – a educação de C. Thompson foi abafadamente religiosa, e estes são temas que já expusera em Bible Doodles. A equilibrada forma como utiliza pranchas com estruturas clássicas e claras e logo a seguir experimentalismos mais arrojados no seu design geral. O uso de painéis “silenciosos” para desacelerar o ritmo e aprofundar o que se explicita (conjunções explicativas). A transfiguração do “real” representado para uma metáfora visual alargada (um mecanismo intimamente relacionado com as técnicas da bd). E mais um par de coisas... Um recurso interessante, e que ainda gostaria de salientar, é o do “Tinkerbell effect”, uma espécie de floco de neve em filigrana que se encontra na lombada do livro, mas que atravessa todas as suas páginas como um símbolo multímodo. Apesar de ser tão simplesmente um dos elementos de padrão da colcha que receberá (pág. 181), atravessa uma sucessão de funções. Aparece pela primeira vez como efeito de um sonho (42), para se associar mais intimamente com o fascínio do amor e a sua transfiguração divina (306), apesar de ter já servido de impressão da passagem entre escuridão e luz (181), ilusão (209), emblema da ascensão e queda das almas (293), e mais tarde passa a ser como que corrompido, utilizado a paixonetas passageiras (552-553), terminando como simples floco de neve de uma outra “colcha” que tudo encerra. Veja-se em especial como essas formas se complexificam e cruzam entre as páginas 417 e 437: há aqui um crescendo cujo vértice é o amor físico entre Craig e Raina, seguido de um tema contínuo, e logo um decréscimo na relação. Sturm und Drang em tom de amores adolescentes.
A dor e uma espécie de nostalgia por algo que não deixa saudades, as emoções que atravessam estas páginas, que representam acima de tudo o cortar com as origens educativas pesadas, que Thompson vê agora ter ultrapassado, é coroada com o gesto, bastante significativo, de dedicar estes mesmos Blankets à sua “família, com amor”.
Top Shelf: Marietta, 2003. 502 págs., preto e branco. USD 29,95. Posted by Hello

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